Odisseu era negro?

por Comunidade Cultura e Arte,    23 Fevereiro, 2018
Odisseu era negro?

Por causa da inacessibilidade cada vez maior das línguas em que foram escritas, as grandes obras literárias da Antiguidade Clássica são como partituras musicais: precisam de intérpretes (tradutores e comentadores) e de leitores para voltarem à vida, tal como as 32 sonatas para piano de Beethoven ou a «Norma» de Bellini precisam de quem as toque, cante e oiça para deixarem de ser só cifras mortas escritas num papel.

Sempre vi o meu trabalho de tradutor como análogo ao do intérprete musical (seja ele maestro, instrumentista ou cantor). E sempre me solidarizei com aqueles intérpretes musicais que se consideram servos da música que interpretam: por isso sempre gostei mais de Alfred Brendel do que de Glenn Gould; sempre gostei mais de Wilhelm Furtwängler do que de outros seus rivais; sempre admirei a maneira como, acima de tudo, Maria Callas serviu os compositores que cantou de uma maneira que valorizou sobretudo a sua música. Quem poderá dizer que Bellini é um compositor de segunda categoria depois de ouvir Callas a cantar a «Norma»?

A tarefa de traduzir obras como os poemas de Homero não é diferente, na minha opinião, da de interpretar Beethoven ou de cantar a «Norma». Tem de haver um conseguimento técnico sem o qual a tarefa não é possível. Quando perguntaram a Elisabeth Schwarzkopf o que era necessário para ser bom cantor, ela respondeu «talento, talento, talento; trabalho, trabalho, trabalho». O talento é só o ponto de partida, pois o resto é, de facto, trabalho. No caso do tradutor de Homero, esse trabalho não são só as longas horas que estes poemas gigantescos levam a traduzir: é o estudo infindável (porque nunca pára, nunca é suficiente) da língua e da bibliografia especializada. Além do grego, é preciso saber alemão e inglês de forma perfeita; é preciso ter paciência para ler muita bibliografia do século XIX em letra gótica (Fraktur). Sobretudo, é preciso aceitar que, por muito que se trabalhe e se estude, a tradução nunca será perfeita, porque a perfeição não está na natureza das traduções.

Tal como Brendel quis gravar uma segunda vez as sonatas de Beethoven (e Callas uma segunda vez a «Norma» de Bellini), também eu entendi que era necessário melhorar a minha primeira tradução da Odisseia, não só porque havia muitos pormenores cuja forma de serem melhorados me foi mostrada pela passagem do tempo, mas sobretudo porque o trabalho não estava completo, na minha opinião, por lhe faltarem notas e comentários.

É que o fascínio do poema não está só na sua materialidade poética: está também nas mil questões que levanta e em tudo o que está nas entrelinhas, que só um helenista profissional consegue descortinar. Tornar essas entrelinhas visíveis e compreensíveis a um público que não leia grego foi o meu grande desafio nas notas e comentários que ocupam quase 300 páginas do novo livro: trazer para a língua portuguesa o melhor da discussão internacional sobre a poesia homérica de uma forma que seja inteligível a qualquer leitor.

É claro que essa discussão internacional vai mudando com os tempos: hoje discutem-se temas muito diferentes daqueles que se discutiam no século XIX, ainda que essa bibliografia ainda seja relevante (e encontrar-se-ão muitas citações de artigos e de livros de Oitocentos no corpo das minhas notas, sempre com o alemão simpaticamente traduzido para português). Hoje, necessariamente, a leitura da Odisseia vai suscitando questões que são próximas da sensibilidade contemporânea. A questão da escravatura, por exemplo, e a vida e sofrimentos de escravas e de escravos no poema; o entendimento de masculinidades e de feminilidades na mundividência homérica; e questões para as quais a filologia clássica do passado não tinha paciência, mas que hoje têm de ser colocadas. Uma delas é nada mais, nada menos, se o poeta da Odisseia, ao descrever-nos o seu herói como tendo «pele negra» (16.175), está de facto a dizer-nos que Odisseu era negro. Sobre este problema, ignorado ou «branqueado» pela filologia clássica do passado (que se sentiu escudada pelo facto de, em dois versos do Canto 13, ser dito de forma ilógica que Odisseu tem cabelos loiros), a nova Odisseia propõe uma extensa nota que ocupa quase toda a p. 479.

Existe uma resposta para a pergunta «Odisseu era negro?». Se estamos à espera de uma resposta em – passe a expressão – preto e branco, não encontraremos nenhuma digna da mais exigente objectividade científica, valor que tenho a responsabilidade de salvaguardar, seja na tradução de Homero, seja na da Bíblia.

No entanto, o mundo de Homero não é uma realidade a preto e branco: é multicolor. Por isso nos parece em 2018 tão novo como há 2700 anos. É um fresco vivo que tocamos com as mãos; e espantamo-nos, ainda hoje, por Homero nos deixar os dedos tingidos de tinta colorida. Tinta que, 2700 depois, ainda está fresca.

Frederico Lourenço

Texto da autoria de Frederico Lourenço, originalmente publicado no Facebook do mesmo. Sendo aqui reproduzido com a devida autorização.

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