Oito filmes a destacar no Festival de Cannes: o regresso do Brasil, a Ásia e a banalidade da guerra

por José Paiva,    29 Maio, 2023
Oito filmes a destacar no Festival de Cannes: o regresso do Brasil, a Ásia e a banalidade da guerra
“Asteroid City”, de Wes Anderson
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A 76.ª edição do Festival de Cannes trouxe pesos pesados dos EUA e da Ásia. O desfile de estrelas de Hollywood impressiona, mas o cinema esteve noutros cantos do mundo.

É sempre ingrato escolher os melhores filmes do melhor festival de cinema do mundo. Não há tempo para tudo. Conferências de imprensa, almoçar e jantar, cocktails, entrevistas, respirar, escrever, respirar. Esta foi a minha primeira vez por aqui e vou tentar falar dos filmes, entre Competição Oficial e Sessões Especiais, que mais me encheram as medidas. Podem não ser exactamente aquilo que dizem outros jornais. Ou os que ganharam. Até porque não houve tempo de ver tudo. O Palma de Ouro, “Anatomie d’Une Chute”, de Justine Triet, foi um deles.

Esta edição trouxe duas sensações diferentes sobre o mesmo cinema: o de que os Estados Unidos da América, com as plataformas de streaming e a Ásia, com o regresso à vida no pós-Covid-19, vão continuar a ditar as regras do jogo. Pesos pesados, de Martin Scorcese a Quentin Tarantino, de Scarlet Johansson a Julian Moore, passaram pelas passadeiras vermelhas. Houve outros, como Brie Larson ou Paul Dano (membros do júri), ou mesmo Michelle Yeoh ou Emma Stone, que festejaram e passearam por Cannes.

Há também uma sensação de despedida de um cinema que não volta mais. Basta olhar para Wim Wenders, que estaria meio esquecido, Vitor Erice, realizador que trouxe “Cerrar los ojos” mas não filmava há mais de uma década ou Kean Loach, que apresentou o seu último filme aos 80 anos: “The Oald Oak”. Houve também outros grandes nomes e estreias, de Akis Kaurasmaki (“Fallen Leaves”), Nanni Moretti (“Il Sol Delle’Avvenire”), ou Marco Bellocchio (“Rapito”) que não consegui espreitar: fico à espera de os ver em Portugal. Todos eles com excelentes críticas. É de deixar água na boca. Alguns dos filmes que falarei aqui também estarão no nosso país, outros será preciso esperar pela rota dos festivais — ou pelo streaming. Eis as minhas escolhas.

“Retratos-Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho

Escolher um documentário caseiro sobre o passado e o futuro do Recife através das memórias do cinema, na Sessão Especial, onde não há prémios para ninguém só estatuto, parece pura provocação, mas não é. Kléber Mendonça Filho, um dos mais badalados realizadores brasileiros (“Bacurau”), da atualidade, andou vários anos para colocar de pé este precioso monumento, feito em homenagem às pessoas da sua vida no Recife, onde nasceu. Kléber Mendonça mostra-nos a influência que a sua casa teve, no início da sua carreira, na relação com a sua mãe, que a comprou a pulso, e irmão, que a remodelou ainda novo, com os cães, gatos, todos os quatro cantos das paredes. Tudo tem vida ali. São 40 anos, é muito tempo, mas não demasiado para o pernambucano. O espaço aqui é a personagem, que esconde segredos e fotografias fantasma, que revela figuras do além, deixando-nos presos ao ecrã como se estivéssemos a ouvir uma história de embalar. Passamos depois para as transformações das três principais salas de cinema do Recife, pela mão do senhor Alexandre, um cartão de visita esquecido que não existe mais: acabaram substituídas, em grande parte, por igrejas. Dantes, via-se Hitchcock “de joelhos”, agora, o evangelismo, qual parasita que virou o país ao contrário, é quem dita as regras. Em Cannes, sentiu-se a presença brasileira em força, tanto em novos autores como de representantes do governo de Lula da Silva e imprensa. Estão de volta. Um realizador consagrado a voltar para trás para nos falar do futuro é sempre bom. Mas Kléber Mendonça Filho teve a mestria de nos fazer regressar a um tempo que não volta mais.

“Retratos-Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho

“Zone of Interest”, de Jonathan Glazer

Mais um filme de guerra? Não. Jonathan Glazer não filmava há demasiado tempo e a espera compensou. Hannah Arendt desenvolveu a teoria de que muitos dos nazis do III Reich não eram maus, estavam simplesmente a cumprir ordens.  Em “Zone of Interest” essa tese ganha corpo e vira filme de terror. Não do que assusta gratuitamente, mas do que faz suar, engolir em seco, agarrar a mão de quem está ao nosso lado da sala. Uma pequena família feliz que vive mesmo junto a Auschwitz. Dizem ter uma vida boa, riem-se na cama, os miúdos brincam acompanhados pelo cheiro, o som e as imagens do horror que mora ali ao lado. O pai, general, sobe na carreira, a mãe, matriarca, não quer perder a rotina alegre que têm ali. Não há arrependimentos porque, para eles, o Holocausto é mera nota de currículo e prestígio. Tudo normal, tudo assustador.  Seria estranho que não fizesse uma rota imparável até aos Óscares, depois de ter ganho, nesta edição, o Grande Prémio.

“Zone of Interest”, de Jonathan Glazer

“Monster”, de Kore-eda Hirokazu

As más críticas não me fizeram gostar menos deste filme de Hirokazu Kore-eda. É preciso ter cuidado com as reações a quente em Cannes e ainda mais com as críticas lançadas logo após o filme estrear. Um caso de bullying que vai criando suspeitos, o professor, o filho, o agredido, o agressor. Por quem é que devemos torcer? Uma amizade entre duas crianças, uma diretora de escola distante, uma mãe viúva em desespero. E um Japão filmado em escala grande, onde a chuva e o fogo trazem sempre notícias ainda piores. As personagens falíveis, as suas preferidas, optam pelo silêncio, pelo esconder, o não dizer para não quebrar a ordem regular das coisas, porque em mais de metade da nossa vida andamos a esconder o que sentimos uns pelos outros, com medo do castigo que há de se seguir. Sai-se da sala com a sensação de se ter visto um filme grande, completo. Cheio. Este ano, ao contrário da Palma de Ouro em 2018 com “Shoplifters”, Kore-eda fica-se pelo prémio de Melhor Guião.

“Inside the Yellow Cocoon Shell”, de Thien An Pham

Vinha preparado e com vontade de explorar o cinema asiático, especialmente o chinês, sob ditadura que só agora está a regressar à vida normal. Não sabia nada sobre este filme de Thien An Pham — na verdade, tirando os norte-americanos, não sabia nada sobre quase nenhum que vi — tal como a personagem principal não sabe para onde ir. Esta é uma odisseia de um homem completamente perdido. Um jovem que vê o seu sobrinho ficar sem mãe, é obrigado a ser pai sem saber, é obrigado a crescer sem ter tempo. Vai à procura do irmão pelo Vietname, imenso no espaço, asfixiante no tempo. Estamos no limite de uma fantasia, de figuras do além e outras do seu passado, que logo se apaga porque o luto o puxa para trás. Ou para nenhum lugar. Em longos planos que se vão aproximando aos nossos ouvidos, a personagem aprende com os mais velhos, são eles quem, de alguma forma, tentam passar-lhe o testemunho de saber viver. A juventude é deitada para o lixo porque não há para onde ir. Levou para casa o prémio Caméra D’or (Melhor Primeira Obra).

“La Chimera”, de Alice Rohrwacher

Uma proposta inusitada de Alice Rohrwache, apelidada de “poesia de pacotilha” pelo Le Fígaro: Josh O’Connor, que fez de Príncipe Carlos em “The Crown” (Netflix), a virar arqueólogo moribundo em Itália. Ele não toma banho, não faz a barba, só existe porque tem de ser. Há uma presença feminina que não volta mais. Tem um poder sobrenatural de descobrir tesouros debaixo da terra (quimeras e outras relíquias) mas vive numa barraca que nem eletricidade tem.  Na primeira parte não sabia o que estava a ver. Se um romance italiano de um actor farto da Netflix que quis ir respirar para um cinema mais independente, se um Indiana Jones com o look vintage dos filtros de Instagram. Mas esse é o convite que Alice faz. Utiliza o género de aventura, de uma grupeta à margem que paga dívidas, assaltando os cantos obscuros da terra, a uma personagem ausente que só se conhece no fim, para contar a tragédia de um homem abandonado, só confortado por uma matriarca (Isabella Rossellini) no fim da vida. Divertido e triste. Nunca sabemos como nos devemos sentir. É experimentar.

“La Chimera”, de Alice Rohrwacher

“Boléro”, de Nans Laborde-Jourdàa

Nem todos precisamos de filmes de quatro horas para preencher o nosso vazio existencial. E Cannes teve muitos filmes de longa duração (“Occupied City”, “Killer of The Flower Moon”, “Youth”, “Fechar os Olhos”). A curta-metragem “Boléro”, de Nans Laborde-Jourdàa, é um espectáculo de transgressão, feito a partir de uma casa de banho pública, esse lugar dos passageiros decadentes. Dezassete minutos a explorar o desejo e a violência que se manifesta no corpo de quem dança e no corpo de quem vê. Um vírus que contagia um pequeno supermercado, debaixo de um trauma de infância de um suposto abuso sexual. A beleza no meio da sujidade. Somos todos tomados de assalto por Fran, que nada mais tem do que o seu corpo. Não admira que tenha sido premiado nesta edição. 

“Eureka”, de Lisandro Alonso

O realizador argentino Lisandro Alonso gosta de provocar e de procurar. Em “Eureka”, Lisandro pega num dos seus filmes anteriores, “Jauja”, e volta a colocar Viggo Mortensen em roupa de cowboy. Um western empacotado numa caixa de televisão, com uma divertida Luísa Cruz, que “foi muito mais divertida do que estava o guião”, disse-me Lisandro Alonso. Mas o filme não é sobre isto porque não se fica por aqui. Viajamos depois até à vida de uma polícia frustrada, ao ponto de perdemos a paciência com os sons, os detidos e o ambiente nas suas rondas nocturnas em Dakota, nos EUA. Cheira a “Fargo”, mas não é aí que estamos. Conhecemos a reserva e a história de uma comunidade indígena, a quem Cannes deu muito palco, de Scorsese a João Salaviza (“Flor de Buriti”, único português premiado). Terminamos num terceiro acto no Brasil, entre o documentário e a ficção. “Eureka” serve para todos os cinéfilos ou para nenhum e é esse o seu truque mais valioso.

“Asteroid City”, de Wes Anderson

Já ninguém precisa de saber o que vem das mãos de Wes Anderson. O estilo próprio não engana. Pode até já nem entusiasmar (a mim, sim, ver os seus filmes é como repetir a ida a um museu só para ver uma peça de que se gosta muito). Em “Asteroid City” vamos até aos anos 50 de uma América maluca com as bombas atómicas e a iminente chegada de aliens, no meio de um deserto. Um programa de rádio dentro de um programa de televisão dentro de um teatro. Anderson, devoto dos seus actores, foi brincar e explorar o lado performativo de quem representa. Voltar aos seus filmes é sempre regressar a um lugar onde já se foi feliz. E numa era de excessiva carga visual, é importante ter um mestre que ainda se preocupa com quem vai para a frente do campo de batalha chamado “tela de cinema”.

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