Onde nos encontramos
Vivemos cercados. Não por muros, mas por espelhos. Refletimos uns nos outros apenas o que já reconhecemos, o que confirma as nossas crenças, o que não fere as nossas certezas. Habituámo-nos à vida sem atrito, à convivência higienizada de contradições. É confortável. É seguro. Mas é também o princípio do fim de qualquer comunidade que ainda queira chamar-se humana.
O caminho que nos trouxe até aqui foi generoso. Trouxe-nos escolas abertas, livros acessíveis, arte democratizada, vozes múltiplas. Deu-nos a possibilidade de escolher, de ser e de pensar sem medo. O progresso (esse nome complicado) deu-nos o privilégio da liberdade e a ilusão de que ela bastava. Porém, algo se perdeu no meio desse ganho: o sentido do outro.
Nunca estivemos tão próximos e, paradoxalmente, nunca estivemos tão sós. As redes sociais que prometiam ligar-nos acabaram por nos separar em arquipélagos de afinidade. Só lemos o que confirma o que já pensamos, só seguimos quem repete as narrativas que validam o nosso conforto moral. Tornámo-nos alérgicos à dúvida e, com isso, perdemos a nobreza do pensamento crítico. Vale a pena lembrar que pensar é duvidar, e duvidar é aceitar o risco de estar errado.
“O verdadeiro exercício democrático não está na imposição do consenso, mas na arte do desacordo civilizado.”
Hoje, valoriza-se a convicção inflexível, o gesto performativo, a frase lapidar que cabe num tweet. A complexidade assusta-nos, o silêncio parece fraqueza e a hesitação, uma falha moral. Há quem grite “tolerância”, mas apenas até que alguém pense diferente. A diferença tornou-se um crime de opinião.
A intolerância que hoje corrói o espaço público não nasce da ignorância, mas da saturação. Vivemos rodeados de discursos, incapazes de processar a torrente de informação que nos atravessa diariamente, a nossa relação com o mundo é a de quem troca o olhar pela notificação. O problema não passa pela falta de informação, mas antes pelo excesso de certezas.
Talvez por isso a compaixão se tornou tão rara. Esquecemo-nos de que a comunidade não é a soma de indivíduos, mas o resultado do esforço de convivência entre as suas diferenças. É no atrito que o humano se revela: quando duas vontades se encontram sem se anularem.
Kundera lembrava-nos que compaixão vem de cum patior: “sofrer com”. É o exercício de suportar a presença do outro sem a necessidade de o converter. A compaixão é o que torna possível a convivência entre diferenças, porque reconhece na discordância uma forma de vulnerabilidade comum. É talvez o último território onde o diálogo ainda pode começar.
Nos tempos que vivemos, porém, tudo parece girar em torno da homogeneidade, do gosto, da opinião, do estilo de vida, até da forma como amamos ou discordamos. O plural é substituído pelo idêntico; o diverso, pelo idólatra do mesmo.
Agustina Bessa-Luís escreveu que “o homem moderno perdeu o sentido de humanidade porque perdeu o sentido do trágico”. Talvez seja esta a ferida central do nosso tempo. Ao eliminar o conflito, ao evitar o confronto de ideias, apagámos o trágico — e com ele, a consciência da nossa imperfeição. O trágico é o reconhecimento de que somos falíveis, que a verdade se constrói entre erros e reconciliações, que o outro existe para nos desinstalar. Ao recusarmos o trágico, tornámo-nos superficiais. E na superfície, tudo é ruído.
A perda do sentido do trágico fez-nos perder também o valor da dúvida. A dúvida é o que humaniza o pensamento: obriga-nos a reconhecer limites, a ponderar, a escutar. Sem ela, o pensamento transforma-se em doutrina e o discurso em arma. O fanatismo não começa no ódio, começa na ausência de interrogação.
Há, hoje, uma certa infantilização do espaço público. A dúvida é vista como fraqueza, a evolução de pensamento como traição, a escuta como rendição. Mas viver em democracia é precisamente o contrário: é aceitar o desconforto de coexistir com o que não se é. O verdadeiro exercício democrático não está na imposição do consenso, mas na arte do desacordo civilizado.
Tudo isto seria apenas um problema moral se não tivesse consequências políticas. Mas tem. Uma sociedade que não suporta o contraditório torna-se vulnerável ao autoritarismo. Quem se habitua a viver sem diferença acabará por aceitar viver sem liberdade. É um caminho que começa com indignações justas e termina com silêncios convenientes.
Por isso, talvez a tarefa do nosso tempo não seja reconciliar as diferenças, mas reaprender a habitá-las. Aceitar que há perguntas sem resposta, problemas sem solução e verdades que convivem em tensão. Talvez o nosso maior desafio seja o de reaprender a suportar o incómodo, o de permanecer nesse território estreito entre o certo e o incerto, entre o eu e o outro, entre o ruído e o silêncio.
Acredito que é aí, nesse intervalo frágil e imperfeito, que a humanidade ainda acontece.

