As dores dos outros
Acusam-me de bater sempre na mesma tecla, mas não há, a meu ver, exemplo que melhor ilustre este caso. A verdade é que quando vi Emma Bovary prostrada na cama, às portas da morte, algo novo assaltou o meu espírito. Uma figura hedionda, acusativa, mesquinha, supérflua, rancorosa, hesitante, que o autor me ensinara a julgar sem remorso ao longo de toda a obra, tornava-se um ser frágil à procura do último rastro de redenção. Um ser merecedor de toda a compaixão da humanidade.
De súbito, as qualidades de Emma floresciam como os descampados agrestes florescem com as primeiras chuvas da primavera. Havia, naquelas páginas, a figura de uma mulher resiliente, lutadora, sonhadora, que se recusara a ceder às vontades da sociedade. Uma mulher que tomara a decisão de abandonar a vida pela porta grande. O destino de Bovary é, ainda hoje, um dos melhores espelhos para encontrar reflectida a forma como lidamos com as dores de aqueles que nos rodeiam.
Não vale apelar a moralismos na literatura. Ela existe apenas quando despida de dogmas e lições. É cada vez mais evidente, contudo, que não existe melhor forma de aprender a empatizar do que lendo um bom livro. Sentir uma outra pele, mesmo fictícia, como nossa, não só expande tremendamente a experiência de estar vivo, ensina-nos que os outros, ao nosso lado, também o estão.
Isto leva-me a crer que o crescente desinteresse na literatura e a proliferação das extremas no mundo não são de todo fenómenos desassociados. A constante celebração de individualidades e o filistinismo voluntário são, a meu ver, os maiores adversários de uma possível sociedade pacífica e emocionalmente sustentável.
Meio século depois do auge do pós-modernismo, encontram na erudição o inimigo do homem comum. Esquece-se que existe nela uma procura por entender melhor as profundezas da experiência humana. A erudição é também um luxo de pessoas com tempo para se conhecerem a elas próprias, mas é por isso que todo povo deve esforçar-se para que os seus cidadãos tenham acesso e nutram interesse pelas suas artes. Essa disponibilidade é um direito fundamental da nossa espécie.
N’ A Montanha Mágica de Thomas Mann, ao visitar o sanatório para enfermos onde decorrerá a maior parte da narrativa, o protagonista Hans Castorp menciona que não há nada mais solene do que um moribundo. Isto marca o posicionamento inicial do protagonista em relação a uma discussão presente em toda a obra. A compaixão para com os doentes, a ideia de homem e a inevitável decadência do mesmo, invadem a cabeça do leitor ao longo das 800 páginas desta história. Oitocentas páginas. Qual é o papel de um romance de 800 páginas nos nossos dias? Existe sequer espaço para uma obra dessa dimensão? Cada vez menos. Apesar de residir no tempo imerso nessas 800 páginas o luxo da introspecção. O poder da literatura, da música, do cinema, das artes (quando não são fogo-de-artifício corporativo) reside nessa capacidade de nos levar às profundezas da experiência humana.
Dito de outro modo (e levando emprestadas algumas palavras de Stig Dagerman): o entretenimento jamais será capaz de satisfazer a nossa necessidade de consolo. O fogo-de-artifício nunca será suficiente. Fechar as portas a uma arte que nos desafie e desassossegue é fechar as portas ao nosso mais íntimo descobrimento pessoal. É negar os traços comuns que nos unem a todos enquanto espécie desde o Cântico dos Cânticos.
Talvez o nosso decepcionante século tenha visto de novo o triunfo das ideias radicais por ter sido também o século da derrota definitiva das ciências humanas. No momento em que se deu por estabelecido que todas as atividades académicas deviam ser rentabilizadas, assinou-se a certidão de óbito da nossa capacidade de pensar e empatizar. A história, a filosofia, a literatura, são tão indissociáveis da civilização como o são os conhecimentos dos vários engenheiros que constroem o mundo, mas, ao contrário destes, não geram guito.
A nossa vida exige o seu lado humano, mesmo que não o consigamos dizer por palavras. Exige uma linguagem que expresse o torvelino interior que todo indivíduo vive. Só quando nos autorizarmos de novo a aprender essa linguagem é que as manifestações de tolerância, de compreensão, de compaixão voltarão ao foro humano. Não creio que o fogo-de-artifício cuspido pelos grandes serviços de streaming e pelas publicidades de instagram sejam capazes de nos levar lá. Não acredito que uma entrega absoluta ao entretenimento bacoco nos salve do sectarismo e do ódio imanente.
“O homem não vive somente a sua vida individual, consciente ou inconscientemente participa também da vida da sua época e dos seus contemporâneos”. É uma frase que dá o que pensar. Quem a diz é Thomas Mann, nos primeiros capítulos de A Montanha Mágica. Uma frase que responsabiliza, que coloca o leitor aqui, agora. Um bom primeiro passo para aprender a lidar com as dores dos outros.
Crónica de Mariano Alejandro Ribeiro
Mariano Alejandro Tomasovic Ribeiro nasceu em Buenos Aires, em 1993. Faz livros, escreve poemas, contos, canções, crónicas e argumentos. Colaborou com ficção e poesia em diversos jornais e revistas literárias. Formou-se em Psicologia, Jornalismo e Teoria da Literatura. Em 2018 foi um dos vencedores do prémio Novos Talentos Fnac. No mesmo ano foi seleccionado para integrar a Mostra Nacional de Jovens Criadores. Vive e trabalha em Lisboa.