Opinião. Crónica de Natal
Este ano, mais uma vez, fez-me especialmente sentido um dos poemas que mais me deslumbram de Sophia de Mello Breyner Andresen: o poema «Escuto» (do livro «Geografia»): «Escuto mas não sei / Se o que oiço é silêncio / Ou deus».
Deus foi o objecto privilegiado dos meus pensamentos em 2019 (ou não estivesse eu, diariamente, de volta da Sua alegada Palavra). Todos os dias me perguntei «o que é Deus?» e «quem é Deus?». Será, como escreve Sophia, «a consciência atenta / Que nos confins do universo / Me decifra e fita?»
Continuo sem saber. «Apenas sei que caminho como quem / É olhado amado e conhecido». Na verdade, nunca como em 2019 me senti tão «olhado, amado e conhecido» por esse Alguém.
Mas se esse Alguém olhou tanto por mim em 2019, como explicar o facto de neste nosso planeta viverem incontáveis milhões de pessoas de quem Deus não se lembrou? As matanças e as torturas que marcam tão inesquecivelmente as narrativas da Bíblia continuam em força: a vocação do ser humano para a crueldade exercida de forma impiedosa sobre o seu semelhante continua imune (mesmo no seio do cristianismo) à mensagem que foi trazida há 2000 anos pelo Menino cujo nascimento festejamos absurdamente num dia (25 de dezembro) em que, de certeza, ele não nasceu. O ódio irracional do ser humano para com o seu semelhante (e quanto mais semelhante mais ódio suscita: sunita contra xiita e por aí fora) parece ser algo tão intrínseco à natureza humana como cheirar mal dos pés. Está no nosso código genético. Faz parte de nós.
Por isso é tão avassalador o desafio da mensagem do Menino. Porque é, nada mais, nada menos, do que isto: desmontar a montagem humana.
A «boa-nova» de Jesus não é, para mim, o «reino dos céus» visto da sacristia. A boa-nova tem que ver com aqui e agora: com o mundo dos vivos – com o mundo dos que estão vivos, hoje. Os seres humanos são como as folhas, já dizia Homero: nascem e morrem e têm uma vida efémera. A passagem por aqui é transitória, sem qualquer garantia de isto aqui ser somente uma escala numa suposta viagem rumo a alhures. Provavelmente, não há alhures. Só há aqui. A mensagem do Natal diz respeito a aqui. O desafio de mexermos, cada um de nós, dentro de nós mesmos, com essa fatídica montagem humana é que constitui a mensagem de Jesus.
Gosto sempre de reler a passagem do Evangelho de João em que João Baptista identifica Jesus como aquele que é capaz de anular «o erro do cosmos». É outra maneira de referir esse «glitch», esse «bug» na montagem humana, que tem como resultado o que se está a passar na Síria, no Iémen, e em tantos outros sítios no mundo. É algo de transversal, como sabemos, às espécies que habitam este planeta: vespas da espécie X executam genocídios de outras vespas, da espécie Y. O mesmo sucede com rãs, plantas, peixes e sei lá mais o quê. O ser humano está sujeito a esse erro do cosmos, mas – contrariamente às vespas e aos sapos – teve a sorte de Alguém lhe ter vindo dar uma solução para o glitch.
Jesus foi, de facto, a revolução na história da humanidade porque foi quem apontou a solução. É uma solução exigente, eu sei, mas se todos a puséssemos em prática seria, de facto, A Solução.
Qual é? É tratarmos os outros como gostaríamos de ser tratados por eles e irmos ainda mais longe do que isso, fazendo activamente bem àqueles que nos odeiam. Claro que é esforço a mais para pedir a sapos ou a vespas. Mas nós, humanos, conseguimos tanta coisa! Conseguimos inventar a democracia, fazer o Renascimento italiano, curar inúmeras doenças, compor as Variações Goldberg, ir à Lua, pôr toda a gente a falar no Facebook. Só não conseguiremos corrigir o «bug» se não quisermos.
Temos de querer todos, sim. Biliões de nós. E até agora não temos querido, de facto. Mas felizmente, há esta boa notícia: todos os anos há mais uma oportunidade. Porque todos os anos há Natal.