Opinião. O latim de todos os dias
Um dos grandes prazeres que o conhecimento do latim me dá é a capacidade de relativizar o dia a dia pensando nas coisas que me são ditas (ou escritas) através do prisma da linguística latina. Quando alguém me escreve a pedir algo «com urgência», lembro-me de que «urgência» vem do verbo latino «urgeō», cognato do verbo alemão «würgen», que significa «estrangular». E penso logo: não vou deixar que esta pessoa me ponha as mãos no pescoço.
Também penso na linguística latina quando recebo certos emails universitários, que começam com o adjectivo «Caro Colega». Normalmente é porque um prazo para qualquer coisa já passou – ou porque estou a ser solicitado para coisas que não quero fazer. Aí divirto-me a pensar se a pessoa se dará conta de que «caro» (em latim «cārus», cujo sentido primário é «caro» por oposição a «barato»; e, por extensão de sentido, «caro» na acepção de «estimado», «querido») é cognato de uma palavra inglesa muito feia: «whore».
(Se não acreditarem, consultem o Oxford Latin Dictionary.)
Mas o grande prazer do latim de todos os dias é ouvir, da boca de pessoas que nunca estudaram latim, palavras e construções latinas. Isto vem a propósito de uma frase ouvida hoje de manhã num café de Coimbra. Dizia uma senhora a outra: «eu sujeitar-me a isso! Era o que faltava!»
Para um professor de línguas clássicas como eu, esta construção é deliciosa («eu sujeitar-me a isso!»), porque é aquilo a que se chama, na gramática latina, o «infinitivo de exclamação», de que há logo dois exemplos no Canto 1 da Eneida: primeiro quando Juno exclama «mēne inceptō DESISTERE uictam!» («Eu desistir vencida do que comecei!»); e depois quando o próprio Eneias grita «mēne Iliacīs occumbere campīs nōn POTUISSE!» («Eu não ter podido jazer morto nos campos de Tróia!»)
A construção existe também em grego. «Eu sofrer estas coisas!» dizem as Euménides de Ésquilo (ἐμὲ παθεῖν τάδε) e, como notam Kühner e Stegmann na sua indispensável «Lateinische Grammatik» (Vol. I, p. 721), existe também em francês (o exemplo que eles dão é «soutenir ce facheux entretien!»).
Eles notam, porém, que em francês não existe a construção com sujeito expresso; que pena eles não terem sabido que ela existe exactamente em português, tal como em grego e latim: voltando à senhora no café de Coimbra, «EU SUJEITAR-ME a isso!»
O que é curioso pensarmos é que o EU em «Eu sujeitar-me a isso!» seria, em termos gregos e latinos, um sujeito em acusativo (e não um nominativo).
Em inglês contemporâneo, existe a construção sem sujeito expresso («what a thing to say!», mas em que «thing» é o complemento directo de «to say»). No entanto, lembrei-me de um vestígio da construção grega, latina e portuguesa (portanto, com sujeito expresso) numa passagem de «Pride and Prejudice» de Jane Austen, quando Elizabeth comenta a carta da irmã, Lydia, e diz: «What a letter to be written at such a moment!»
Esta frase é equivalente às latinas e grega, porque «what a letter» é o sujeito; em latim ou em grego, estaria em acusativo com o verbo no infinitivo.
Seja como for, acho que ninguém diria isso hoje em inglês.
Mas o «infinitivo de exclamação» de Ésquilo e de Vergílio continua bem vivo nos cafés de Coimbra.