Opinião. Uma despedida a Raquel Tavares, a artista
Vi-a cantar ao vivo, pela primeira e última vez, tinha os meus catorze anos. Estava na primeira fila de um concerto que deu em Alfama, lugar de residência e de autonomeada condição. Apaixonei-me, nessa noite, por tudo o que nela era intrinsecamente castiço.
A Raquel (que me permita a intimidade) semeou em mim, uma jovem guitarrista, a ingenuidade das cantigas e explicou-me em cada palavra que cantava o que realmente era trazer a música no coração: é sustentar baldes de emoções alheias e próprias e saber transformar em histórias particulares, cantadas ou simplesmente imaginadas, sentimentos de alguma maneira generalizados.
A verdade é que, nessa noite, não a conhecendo, me senti nela e, por mais tenra que fosse a idade, não houve angústias sussurradas que eu não tenha escutado atentamente e alegrias disfarçadas que eu não tenha cantado com as gentes.
E se a artista despertou em mim a curiosidade emocional, a pessoa e interprete mostrou-me a diversidade cultural contida no espírito lisboeta, subjugado a séculos de histórias trágicas das quais se apoderou o fado. No curto espaço de tempo que foram aquelas duas horas, reparei-lhe o samba no pé e as expressões aciganadas que faziam questão de se fazer ver. Mas foi nos maneirismos que o bairro marcou expressão. Foi nas interações calorosas e doloridas que a miúda bairrista quis tomar presença e, mais que tudo, dar o corpo ao manifesto. Era Lisboa toda ela personificada em cada passo dado e palavra dita que, instantaneamente e sem qualquer tipo de aviso, me roubou o coração beirão e o levou para a capital.
Já lá vão quatro anos desde que a vi pela primeira vez ao vivo. Hoje, esta ligeiramente melhorada guitarrista, estudante de tudo o que a arte abrange e nova residente lisboeta quer agradecer e aplaudir, uma última vez, a artista que tudo isto inspirou quando, naquelas duas horas de setembro, me fez sonhar com o impossível.
Texto de Cláudia Riscado