Ordenador ou ordenado?

por Davide Pinheiro,    11 Abril, 2021
Ordenador ou ordenado?
Nirvana / DR
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Deitei as mãos ao primeiro computador em 1991. Um velho Schneider Euro PC com a drive A das disquetes incorporada no teclado, comprado pelo meu querido avô paterno para gerir, em regime de gozo pessoal, a contabilidade do parque de campismo no qual militava nos corpos sociais. Quando a folha de cálculo de Excel se fechava, era a minha vez de jogar Prince of Persia, Tetris, Simcity, Italia 90 e o primeiro Championship Manager, o único resistente desse tempo feliz de descoberta das “novas tecnologias”, entre sumos de laranja e carcaças com manteiga e fiambre. Já naquela altura, preferia mil vezes o monitor Hercules (croma preto e amarelo) ao ecrã a cores onde, depois das aulas, Vera Roquette e José Jorge Duarte, o conhecido Lecas, nos pediam para escolher diariamente entre o simpático Alf, o destemido MacGyver e o insuportável Um Anjo na Terra.

A grande maioria desses jogos ainda vinha da era ZX Spectrum e pedia para identificar o país. Computador em português, ordenador en español, ordinateur en français. Às vezes, uma palavra diz mais que mil imagens. Foi aí que compreendi a função do computador, perdida na tradução para português: acatar ordens.

Trinta anos depois, ainda há quem insista em chamar-lhes “novas tecnologias”, tal há quem repita “novo coronavírus” apesar de já ter chacinado quase três milhões de pessoas em todo o mundo. A semântica pode ser repetida à exaustão como um pénalti discutido durante uma liga inteira mas há qualquer coisa a transformar-se profundamente.

Até agora, o paradigma tecnológico da criação teve sempre mão humana. O cérebro pensa, o coração sente e a máquina executa ainda é uma trilogia dominante nas o que se está a assistir é uma inversão dos factores, naturalmente não apenas no domínio criativo mas em múltiplos outros sectores.

Na última semana, uma “nova” canção dos Nirvana foi gerada através de inteligência artificial. A ideia partiu da organização Over The Bridge, dedicada a apoiar músicos com problemas de saúde mental, e tem o fim benigno de recolher fundos para esta causa mas, sem surpresa, o resultado é trágico. “Drowned In The Sun” não teria caparro nem para ser um lado Z perdido numa gravação japonesa obscura, talvez transaccionado como um NFT milionário para algum Martin Shkreli.

A inteligência artificial pode ser de uma utilidade vital e é uma ferramenta inevitável, mas além de estar prestes a provocar uma reorganização profunda do trabalha, acarreta riscos. Sobretudo se a sociedade continuar a a cair na falácia de acreditar que a tecnologia é capaz de resolver todos os problemas e de replicar tudo o que os humanos fazem, sem erros.

Como se vê, a inteligência artificial é incapaz de reproduzir o sofrimento de uma canção porque os sistemas de inteligência são diferentes dos humanos. Por isso, um robô nunca poderia escrever um Nevermind, um Back To Black ou um Carrie & Lowell. A inteligência artificial pode resolver todos os problemas entre zero e um mas não tem a capacidade de atingir o Nirvana.

No campo da criação, a assinatura é inalienável mas, até aí, o deslumbramento tecnológico pode derrubar fronteiras até aqui inultrapassáveis ao nível da ética. Estamos a entregar o controlo às máquinas. E agora, quem é o ordenador e o ordenado?

P.S. Esta foi também a semana em que um feto deu à luz um álbum, graças a uma tecnologia MIDI biosónica programada para recolher os movimentos infrauterinos de Luca Yapanqui, filho de Elizabeth Hart (baixista dos Psychic Ills) e de Iván Diaz Mathé (cúmplice de Lee “Scratch” Perry). “Sounds of the Unborn” é uma experiência sónica maternal. Uma recolha inédita de sons apenas possível graças a uma tecnologia avançada, que sacia a curiosidade através do processo e não da obra final. Neste caso, antes da ciência há um coração a bater mesmo que leve, levemente.


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