Origin Story

por António Pedro Moreira,    30 Setembro, 2020
Origin Story
Fotografia de João Amorim
PUB

É um dia de Março de 2008, na Noruega. Deixei Coimbra para trás, que me deixou com um diploma na mão a lembrar-me que agora era psicólogo. Foi um dia longo, passado em reuniões e a acompanhar os toxicodependentes com quem trabalho e, depois das típicas duas horas a perscrutar o mundo perguntando se tem trabalho para mim depois deste estágio, vejo um filme. Into The Wild. Penso. “Que é que estou a fazer com a minha VIDA?… Eu que, de qualquer maneira, estando no meio desta neve toda, já estou a traçar um caminho um pouco diferente?…” O caminho era diferente, é certo. A neve esforçara-se por apagar as pisadas dos outros, mas eu sabia que, de uma maneira ou doutra, alguém já tinha passado por ali. Precisava de ter um caminho original? Não, não precisava. Mas precisava de qualquer coisa e, não sabendo o que era, descartei o Alexander Supertramp e as suas ideias porque, apesar de ele ter existido a sério, para mim não tinha existido a sério. Era um gajo que deu origem a um livro que deu origem a um filme. Eu era um gajo de vinte e quatro anos de Vale de Cambra com ideias de que poderia oferecer algo ao mundo, mas convencido que sempre confinado dentro daquelas pequenas barreiras que põem de lado no bowling para os putos não ficarem tristes por não acertarem em pino nenhum. Essas pequenas barreiras eram uma muralha para mim, mas da mesma forma que não se pode ver a floresta a partir das árvores, eu estava perto demais daquela muralha e ela era tudo, como um estranho ar no qual me envolvia.

Um dia o mundo respondeu-me a dizer que me queria para uma entrevista em Birmingham. Estava convicto de que nunca conseguiria aquele trabalho. O meu inglês era quase perfeito, mas não era perfeito. E sendo a palavra a ferramenta de um psicólogo, achei que empregarem-me seria como um empreiteiro empregar um trolha muito bem-intencionado mas com fita adesiva a mais no seu martelo. Mas fui. Fui e eles lá perceberam que, não obstante os adesivos na minha pequena ferramenta, talvez a maneira como eu a usava era o que importava.

As nuvens inglesas aceitaram o raio de sol que tentei trazer e eu, por minha vez, não fiz caso da sua aceitação e tentei ultrapassá-las, navegando a dez mil pés sempre que possível em direcção a uma língua que não falasse.

Mas eram sempre uns dias.

Sempre uns dias.

Até que 2009 chegou, e com ele o imperativo de férias. Deitado na minha cama naquele quarto bege, minúsculo, na periferia, olhava para destinos enquanto, provavelmente, comia uma piza da pizaria ao lado.

Trezentos euros. Singapura. Ou Goa. “Pedro, tens de ir a Goa, é incrível, muito fixe mesmo” ouvia a Elizabeth dizer-me, dias antes. “Okay, vou para Goa.”

Um dos aspectos que mais me frustra e, ao mesmo tempo, me entusiasma nesta VIDA, é o facto de percorremos uma solitária linha. Temos a ilusão de ramificações, mas essas só fariam sentido se pudéssemos ter mais que uma escolha ao mesmo tempo. Só podendo ter uma, é sempre só uma coisa que nos acontece de cada vez. É sempre, e , uma linha. Como tal, vivemos sempre num cumulativo de todas as coisas que nos aconteceram. Até eu chegar a Inglaterra, esse cumulativo pasmaria Pandora e, já em Inglaterra, culminaram no acaso da minha ignorância. Eu que, sozinho, só tinha saído da Europa para ir ao Omã, meses antes, para uma viagem de uma semana na praia a ler Mario Puzo. “Hey, foda-se, não tirei visto!” pensei, cinco dias antes da partida. O visto demorava cerca de dez dias a chegar. Assusta-me o quanto a minha VIDA depende destas circunstâncias aleatórias todas. Porque, por algum milagre, um dia antes da partida, o meu passaporte veio ter à minha mão com uma nova tatuagem.

Se hoje em dia viajar sem ter nada marcado é a minha norma, na altura fazia-me sentir como um moderno Fernão Mendes Pinto. Eu que, como na Noruega pisava o caminho dos outros disfarçado pela neve, agora pisava o caminho dos outros na areia, ainda que disfarçados pelas maresias indianas.

A bofetada de calor que senti ao sair daquele avião não foi senão um pequeno preâmbulo para a verdadeira bofetada que o meu ser sentiria dias mais tarde. Goa foi praia e bebedeiras e templos hindus ao lado de capelas portuguesas. Foi trilhos em duas periclitantes rodas que alugara a dois euros por dia nas carótidas daquela caótica sociedade. E depois, e como eu lamento não me lembrar como me surgiu, apareceu a oportunidade de ir a Hampi. Em Hampi continuei com outras duas rodas que me levavam a templos e a montes de onde via a despedida do sol.

Mas em Hampi eu ganhei asas. Não as procurava activamente, mas talvez tivesse vivido a VIDA toda com duas feridas abertas no dorso à espera da oportunidade de as implantar.

É uma noite qualquer. Estou no meu albergue. Lembro-me que tivemos de atravessar um campo de batatas ou algo semelhante para lá chegar, com cuidado para não tombar para o lado, seguindo o carreiro doutros mochileiros. Olho à minha volta. Ao meu lado o Fernando, que conheci no autocarro e que viajava por ali sem saber quando voltaria para casa. Depois aquela ali à frente andava em viagem há um ano. O outro há dois. Aquele casal há largos meses. E depois o outro, e a outra, e os outros, e as outras, e eu ali, com nada mais que duas pequenas semanas que tirei de férias para ir para longe, com data de retorno.

Confundiu-me, aquilo. Porque eles eram todos humanos. Eram pessoas que bebiam e fumavam, e comiam e falavam comigo como se eu fosse como eles. Olhei para mim. O que é que me separava deles? Não era coragem, não podia ser coragem. Não era nenhum super-poder também, eles não pareciam ter nada desse género e, indubitavelmente, iam morrer um dia, como eu. As luzes apagaram-se, as pessoas despediram-se, e eu caminhei na escuridão. Lembro-me que havia por lá um cão vadio. Sentei-me, provavelmente de cerveja na mão, encostado a uma árvore, a ouvir o que chegava aos meus ouvidos mas, acima de tudo, o que saía do meu entendimento.

Eu era igual àquelas pessoas.

O Alexander Supertramp era igual àquelas pessoas.

Podia ter sido original. Podia não ter precisado de os conhecer para saber quem eu poderia ser. Mas a linha da minha VIDA tinha acontecido assim, e tinha-me levado ali. A linha ia continuar a ser só uma linha, como sempre. Mas, talvez pela primeira vez, eu tive a perfeita noção de que tinha algo a dizer sobre o lado para que ela se poderia virar.

Não ia inventar nada. O mundo está cheio de pegadas e não há, na verdade, nem neve nem areias que as apaguem totalmente. Mas eu não queria, nem quero, ainda, saber disso. Nessa noite as barreiras do bowling desceram e eu consegui ver o fosso, talvez pela primeira vez. Olhei-o de frente. Era escuro e eu não conseguia perceber o quão profundo era.

Mas tinha de me arriscar a descobrir.

A queda do muro trouxe receios e dúvidas. Mas sem ele o Vento passava-me pelos cabelos, afagava-me a face e aquecia-me o coração.

E não podia, nunca mais, perder isso.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.