Os bufos de esquerda são tão irritantes como os beatos de direita
O meu pai era homossexual e fui criado por duas tias (a quem devo quase tudo) que eram homossexuais. A minha família, de um lado e do outro, é disfuncional. Sou profundamente crente na existência de Deus, mas bastante crítico de religiões e outras organizações de poder humanas. Sou a favor da interrupção voluntária da gravidez (não indiscriminadamente). A favor da eutanásia (em certas situações). Defendo que os animais devem ter direitos. Choca-me que os homens continuem a dominar esmagadoramente as cúpulas das empresas privadas e instituições públicas e por isso defendo as quotas. Sou contra qualquer forma de racismo (não por ter a absoluta certeza de que não o sou). Sou radicalmente contra a pena de morte (não por não achar que algumas pessoas são manifestações de uma ideia de Mal). A democracia, com os seus mecanismos de regulação, existe para que nos possamos proteger de nós próprios. Se não existisse regulação matávamo-nos uns aos outros – em todas as formas. Sou de esquerda. Por acreditar na Igualdade, tanto como acredito na Liberdade – quando a esquerda prescindir de trabalhar para que todos os cidadãos possam ter igualdade de oportunidades, quando a esquerda abdicar de proteger os mais frágeis, então não haverá esquerda.
Não estará tudo perdido, mas sinto-me perdido. Não sei a que lugar pertenço. Antes era-me fácil: se entrasse num lugar com duas grandes mesas, uma com gente de direita e outra de esquerda, não hesitaria na mesa.
Mas agora a mesa da esquerda é muito mais híbrida.
Tem gente que aponta o dedo e castiga Bernardo Silva porque trocou umas mensagens com um amigo (jogador negro do City).
Tem gente que aponta o dedo ao Presidente do Canadá, Justin Trudeau, por se ter mascarado de Alladino numa festa (inacreditável o pedido de desculpas do líder canadiano que se arriscou, também por isso, a perder as eleições).
Passou gente a ser atacada por comer carne de vaca. E a ser olhada de lado por comer qualquer espécie de animal. Ou por achar que uma mulher é diferente de um homem. Ou por acreditar que a polícia nem sempre tem condições para exercer o seu trabalho, o que é culpa de uma sociedade feroz mente politicamente correta e hipócrita.
Tem gente que é atacada por criticar o radicalismo do MeToo. Por acreditar que Polanski ou Handke valem também pela sua obra e não apenas por terem sido devassos ou apoiantes de projetos políticos indignos. Por acharem que os ambientalistas são demasiadamente radicais ou que a comida Vegan é horrível.
Tem gente com dificuldade em trabalhar em determinados lugares por não ser partidário de determinadas causas. Ou por oferecer bonecas às suas filhas e carrinhos aos seus filhos.
O problema do politicamente correto não é a justiça das suas causas – algumas são inatacáveis. O problema dos radicais de esquerda é que não se distinguem dos radicais de direita. Uns porque são beatos, os outros porque são bufos. Uns porque são contra a liberdade por defeito, outros porque são contra a liberdade por excesso.
Não gosto de uns e não gosto de outros. Seria perseguido por uns e seria perseguido pelos outros. Mas os de esquerda preocupam-me mais neste momento. Porque vêm da minha família ideológica e porque à força de uma pureza de costumes, tão próxima da Inquisição, vão ajudando a sedimentar um populismo que tanto criticam. Ao ouvir tantos gritos e tanto histerismo receio que um dia tenha de fugir para algum lado pois não pertencerei a lado algum.