Os coletes amarelos são um movimento contra a ditadura económica e política

por Comunidade Cultura e Arte,    11 Dezembro, 2018
Os coletes amarelos são um movimento contra a ditadura económica e política
“Gilets jaunes”, Paris
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O movimento francês dos “Gilets jaunes” [coletes amarelos] que começou impulsionado pelos camionistas, para se opor ao aumento das taxas sob os carburantes prevista para janeiro, tem estado desde então em contínua expansão. As reivindicações tocam trabalhadores, desempregados, estudantes, lésbicas-gays-bissexuais-transexuais e outras minorias de género, emigrantes e pessoas com deficiência.

O liberalismo económico do atual Presidente e do seu Governo não tem feito mais nada a não ser acentuar as diferenças entre ricos e pobres. A “start-up nation” de Macron é uma ameaça à classe popular. O país pára há quatro semanas porque os franceses estão num ponto de ruptura. Os números podem induzir em erro, se comparados com o cenário português, mas um salário mínimo líquido de 1150€ (1498,46€ brutos), que é o que recebem cerca de 10% dos trabalhadores do sector privado em França, não é suficiente para responder a todas as despesas. Contrariamente ao que se pensa não são os nórdicos que têm a maior carga fiscal da Europa, são os franceses. 49% do PIB vem diretamente dos bolsos dos contribuintes. As cotizações sociais ocupam o primeiro lugar: para onde vai o dinheiro se o Estado social tem sido continuamente atacado?

Se Le Pen é abertamente racista e xenófoba não nos podemos esquecer que a política de Macron, que favorece os mais ricos, é também ela uma política discriminatória na medida em que pertencer a uma minoria aumenta automaticamente a probabilidade de precariedade económica. A luta dos “Gilets jaunes” é acima de tudo uma luta de classes. Sem dirigentes (nem políticos, nem sindicais), este movimento heterogéneo pretende dar voz aos que nunca são ouvidos, aos invisíveis. As manifestações que começaram há quatro semanas reivindicam várias coisas, como por exemplo : o aumento do salário mínimo; a descentralização e consequentemente reabertura dos serviços públicos nas pequenas comunas; o fim do aumento das taxas sobre os carburantes; a fiscalização das rendas com valores máximos estabelecidos pelo Estado e mais habitações sociais; o fim dos benefícios presidenciais para além do mandato; o mesmo sistema de segurança social para todos (inclusive freelancers e artesãos); o restabelecimento do imposto sobre as grandes fortunas; o aumento das ajudas financeiras a pessoas com deficiências ou ainda a integração do referendum popular na constituição.

Em cada sábado, desde 17 de novembro, o movimento leva milhares de manifestantes às ruas com o objetivo de fazer valer a opinião popular. Vivo em Paris e por cá as manifestações chegaram uma semana depois, numa primeira fase na zona do Élysée – a sede presidencial do país – e nas últimas duas semanas um pouco por toda a cidade. Contrariamente ao que a comunicação social deixa transparecer, os manifestantes não são violentos. A única violência é a policial. No último sábado, dia 8 de dezembro, o número de agentes das forças de segurança foi de 89.000 para 136.000 “Gilets jaunes”. Na capital o rácio esteve de 8.000 para 10.000. O Governo está a tentar impedir as manifestações recorrendo à repressão policial, assustando os participantes e potenciais participantes. O recurso ao gás lacrimogéneo é desmesurado e as flash ball já fizeram feridos graves. Os números gerais não são revelados, mas a título de exemplo, as forças de intervenção especial, na manifestação de 1 de dezembro, utilizaram 8.000 granadas de gás lacrimogéneo, 1.193 balas de borracha e 1.040 granadas de mão. No fim-de-semana passado foram utilizadas 10.000 granadas GLI-F4, particularmente perigosas, só em Paris. A França é o único país europeu a autorizá-las.

Eu própria fui vítima das forças policiais quando cercaram um grupo de manifestantes, onde eu estava incluída, para depois os atacarem com gás lacrimogéneo sem motivos de força maior. Em manifestações pacifistas, quando todos os intervenientes ergueram as mãos em sinal de obediência, com idosos e crianças, os CRS (um corpo de intervenção especial) encurralaram os manifestantes num espaço cada vez mais reduzido, impedindo a saída de qualquer pessoa, distribuindo violência gratuita. Quando mais tarde voltei a passar por alguns destes homens vi que estavam a rir às gargalhadas. Nunca senti a minha integridade física tão ameaçada como no último sábado.

O ambiente que se vive nas ruas é de união e entreajuda, músicos tocam instrumentos enquanto se cantam hinos revolucionários, se nos abstrairmos da presença da polícia, o ambiente é quase de festa. A energia que tenho vindo a presenciar é inigualável, a sensação de tomada de poder e de crença no coletivo é avassaladora. Contrariamente ao que se tem vindo a dizer, os “Gilets jaunes” não são fascistas, mesmo que possam existir apoiantes da extrema direita entre os manifestantes, há pessoas com as mais diferentes convicções políticas presentes, de direita e de esquerda, extremos ou moderados. Os atos de vandalismo mediatizados vezes e vezes sem conta são exagerados e tirados do seu contexto, há uma verdadeira manipulação da opinião pública. As tentativas de descredibilização deste movimento só fazem transparecer ainda mais a sua urgência. O descontentamento dos mais desfavorecidos deve ser mandatário na tomada de decisões dos governantes.

A fractura social que está a minar a sociedade francesa já não distingue a população apenas pelos seus níveis de estudo, as suas profissões, o seu poder económico ou as suas origens mas fá-lo também pelo lugar onde vivem. Estamos perante uma política de centralização que causa uma verdadeira segregação espacial, para além da gentrificação causada pelas políticas do neoliberalismo capitalista que expulsam as camadas mais desfavorecidas dos centros urbanos em busca de uma uniformização social. As restruturações políticas são feitas em prol de uma elite urbana que não é representativa da sociedade. Os moradores das zonas rurais são esquecidos. Há um apelo geral ao uso dos transportes públicos sendo que a maior parte do país tem uma rede de transportes públicos ineficazes, fecham-se escolas, diminui-se o pessoal que trabalha nos hospitais, diminui-se o número de tribunais. Só não se esquecem dos contribuintes para lhes cobrar mais impostos e mais taxas para pagar o défice de uma dívida que a classe política impingiu ao país. O sucesso social é visto como o resultado de escolhas voluntárias que levam a acreditar na falsa ideia de meriotocracia. Vive-se uma verdadeira ditadura económica em que o dinheiro compra saúde, educação, cultura e acessibilidade. É por isso que a emancipação popular urge.

Na passada segunda-feira, 10 de dezembro, Emmanuel Macron, dirigiu-se aos Franceses com medidas que induzem em erro – como o aumento do salário mínimo de 100€ quando esse valor corresponde a um aumento bruto, e não líquido, que inclui prémios de atividade que já tinham sido anunciados anteriormente e que não são aplicáveis à totalidade dos trabalhadores – e que não acalmaram os manifestantes que já estão em preparativos para o ato V. A população está cansada de meias medidas e vai continuar a lutar. “Liberté, Égalité, Fraternité”.

Crónica de Sara Gonçalves
Sara Gonçalves é estudante em Gestão de projetos e instituições culturais na universidade Panthéon-Sorbonne, simultaneamente continua a investir na formação teatral na École de Théâtre de Paris. Foi também em Paris que trabalhou um ano como publicitária depois de uma licenciatura em Publicidade e marketing na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa.

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