Os cristãos fundamentalistas convenceram-se de que Deus também pode escolher o seu homem forte

por Frederico Lourenço,    21 Julho, 2019
Os cristãos fundamentalistas convenceram-se de que Deus também pode escolher o seu homem forte
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«Como água canalizada é a mente de um rei nas mãos de Deus: vai para onde Ele quer» (Provérbios 21:1)

Um dos grandes problemas de querer uma sociedade humana com fundamento bíblico não é só a ideologia da omnipotência divina de que falei no post anterior, segundo a qual temos de aceitar que tudo o que acontece é por vontade de Deus (o clima não mudaria se Deus não quisesse que ele mudasse; e quando Deus quiser repor o clima de volta, assim será por vontade d’Ele; se o furacão Katrina deu cabo de Nova Orleães é certamente porque Deus quis e Ele sabe porquê, se calhar porque lá havia ateus ou gays outros indesejáveis assim; etc. etc.).

Outro problema de querer uma sociedade segundo a Bíblia é a ideia de sociedade piramidal que é a «certa» na mundividência tanto do Antigo Testamento como de várias secções do Novo: uma sociedade humana em pirâmide, cujo topo é ocupado por um dirigente escolhido e ungido por Deus.

O cristianismo nascente bem se esforçou para mostrar que não era uma força revolucionária que vinha para desmontar o Império Romano: não só os Actos dos Apóstolos mostram sempre os primeiros cristãos como pessoas bem comportadas e obedientes à autoridade (desde logo Paulo, que nos Actos dos Apóstolos até nos é apresentado como cidadão romano – coisa que Paulo nunca diz de si mesmo nos seus próprios textos), como Paulo assinou o cheque em branco para todos os ditadores cristãos futuros no início do capítulo 13 da sua Carta aos Romanos.

O evangelista Marcos, associado provavelmente à primeira comunidade cristã em Roma, até sentiu necessidade de pôr na boca de Jesus a ordem de que devemos dar a César o que é de César (Marcos 12:17), no que foi seguido pelos dois evangelistas que compuseram tomando por base o evangelho mais antigo (cf. Mateus 22:21; Lucas 20:25).

O elevadíssimo índice de aprovação de Trump e de Bolsonaro entre evangélicos brancos mostra como muitos cristãos ainda hoje anseiam por uma sociedade em que um homem forte, escolhido por Deus, lidera o povo d’Ele em estreita colaboração com o Seu clero. Porque Deus inspira sempre o Seu escolhido (está na Bíblia); porque nada acontece sem permissão divina (está na Bíblia); porque devemos confiar no poder do autocrata que Deus escolheu para nos dirigir porque, afinal de contas, está na Bíblia: «como água canalizada é a mente de um rei nas mãos de Deus: vai para onde Ele quer» (Provérbios 21:1).

Quando vemos o que se passa hoje no Brasil, nos EUA, na Rússia, nas teocracias católicas em que se estão a tornar a Polónia e a Hungria, apetece pedir a Deus: «Senhor, tira-me deste filme».

Mas depois olhamos para as teocracias islâmicas na Arábia Saudita, no Irão, etc. Ou voltamos atrás na História e olhamos para as teocracias no Antigo Egipto e noutras civilizações. E vemos, de facto, como o adubo e o suporte da autocracia é tantas vezes a religião.

Nas eleições para o parlamento britânico de 2015, um grupo islâmico extremista fez campanha para dissuadir os muçulmanos ingleses de exercerem o seu direito de voto, com base na ideia de que votar é intrinsecamente não-islâmico, porque só Deus tem poder legislativo e as leis, a que os fiéis devem obedecer, são apenas aquelas que estão plasmadas na Escritura Sagrada.

De forma análoga, no século XIX o papa Leão XIII apelou aos católicos que boicotassem as eleições para o parlamento italiano, insistindo que ocupar um cargo político resultante de eleições democráticas era incompatível com a prática da fé católica. E o século XX bem nos mostrou como o catolicismo se sentiu perfeitamente à vontade em regimes ditatoriais como os de Salazar, Franco e Pinochet. Porque a democracia implica, necessariamente, a diminuição do poder das igrejas (antes de mais a sua interferência na legislação).

Por isso, a seguir ao 25 de Abril entraram na nossa sociedade portuguesa coisas tão pouco católicas como o divórcio ou a despenalização do aborto (e depois o casamento entre pessoas do mesmo sexo), porque a cartilha segundo a qual uma Assembleia da República democrática tem de se orientar não pode ser a catequese, mas sim um voto de confiança alargado naquilo que são os Direitos Humanos, eles próprios tantas vezes em contradição com a Bíblia (que aprova a escravatura, a subalternidade da mulher e até a violência doméstica [vista como «instrução necessária»]).

Os cristãos fundamentalistas já deram a volta ao pequeno problema da democracia e convenceram-se de que Deus também pode escolher o Seu homem forte por meio de eleições democráticas. Nisso, o papa oitocentista foi ultrapassado pela evangélica Sarah Sanders, até há pouco tempo secretária de imprensa da Casa Branca, com a sua frase imortal (tão espantosa quanto os «alternative facts» de Kellyanne Conway): «God wanted Donald Trump to become President».

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