“Os Espíritos de Inisherin”, de Martin McDonagh: a inimizade, entre comédia e drama
Este artigo pode conter spoilers.
“Os Espíritos de Inisherin” (de título original “The Banshees of Inisherin”) é o novo título do realizador Martin McDonagh, que volta a reunir Colin Farrel e Brendan Gleeson, dupla de Em Bruges (2008), desta vez numa comédia trágica situada na remota ilha de Inisherin, no oeste da Irlanda, durante os anos 20. Altamente aclamado pelos espectadores e pela crítica internacional, o filme encontra-se, agora, nomeado para nove categorias da 95.ª edição dos Óscares, incluindo melhor filme, realizador e argumento original.
Em 1923, na ilha ficcional de Inisherin, os habitantes percorrem a vida com a ligeireza e madornice. Não há muito em que pensar, nem para fazer, a não ser beber umas pints no pub local, passear gado ou ir à igreja ao domingo.
O protagonista, Pádraic Súilleabháin (Colin Farrel), é tão genuíno quanto impertinente e parece fazer da premissa de Alberto Caeiro, “há metafísica bastante em não pensar em nada”, o seu mote de vida. Tudo muda a partir do momento em que o seu melhor amigo, Colm Doherty (Brendan Gleeson), decide deixar de falar com ele. A justificação? “I just don’t like you no more“, que, tal como é referido repetidamente, até é compreensível, mas não é lá muito simpático.
Colm é uma figura mais introspetiva, cansado de conversas fúteis e sem grande substância intelectual. O seu grande desígnio é fazer música, tocar violino, deixar para trás um legado e uma obra artística de excelência, tal como Mozart ou Beethoven. O velho violinista procura afastar-se de Pádraic que, apesar de tudo, parece não conseguir manter-se longe. Através desta dinâmica, a nova peelícula de McDonagh, um realizador que já tinha demonstrado os seus dotes de escrita de argumento em Três Cartazes à Beira da Estrada (2017), traz-nos uma temática insistentemente revisitada no cinema contemporâneo, o início de uma inimizade. No entanto, fá-lo com a maior das novidades, num enredo repleto de imprevisibilidade, pontuado por uma bizarria bucólica castiça, tão característica do espírito rural irlandês, e sublinhado pelo espírito soturno de um folk tale.
À semelhança de Colm, também Siobhán (Kerry Condon), irmã de Pádraic, parece assombrada pela imprevista melancolia que escolhe alojar-se nos corações das mentes mais perspicazes. Apesar de tudo, Siobhán refugia-se no hobby da leitura e toda inquietação acaba dissolver-se em pequenos laivos de ira e indignação. É uma personagem amorosa e inteligente, que apesar de, tal como Colm, possuir um carácter mais intelectual, sabe preservar a sua bondade.
Há que destacar, ainda, a incrível performance de Barry Keoghan, no papel de Dominic Kearney, um jovem da ilha que vive perdidamente apaixonado por Siobhán e é brutalmente espancado pelo seu pai, Peadar Kearney (Gary Lydon), o polícia local.
Os cenários são enquadrados pela lente de Ben Davis, diretor de fotografia, que faz a câmara sobrevoar as encostas e os verdes campos da lindíssima paisagem da costa rural irlandesa. Existem uns empréstimos ao trabalho de John Ford e um distanciamento dos sujeitos, como quem procura afastar-se do conflito, mas mantém os olhos pregados na ação, talvez por curiosidade, talvez porque, como já foi referido, não existe nada de melhor para fazer na ilha.
A estória tem como pano de fundo a guerra civil irlandesa, aproximadamente um ano após o seu começo. A alegoria é evidente, mas tão pouco óbvia ou despropositada, o conflito entre vizinhos, sem aparente motivo, a não ser mera e desamparada forma de ver o confronto como remendo para a solidão e emenda para as divergências. Em última análise, é precisamente isso que o filme nos traz, o compadrio materializado no conflito e o confronto enquanto alternativa à afeição de forma a manter, nada mais, nada menos, que a proximidade.