“Os Excluídos”, de Alexander Payne: a ligação humana por uma lente natalícia retro

por Afonso Marrocano de Almeida,    25 Fevereiro, 2024
“Os Excluídos”, de Alexander Payne: a ligação humana por uma lente natalícia retro
“Os Excluídos”, de Alexander Payne / DR
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Foi da explosão do cinema indie no panorama norte-americano aquando da década de 1990, que surgiu o cinismo seco dos filmes de Alexander Payne. Com reino no campo da comédia-dramática, as personagens que protagonizam as suas obras, tão miseráveis em espírito e personalidade quanto o tom cómico que permeia, navegam peculiares e distintos arcos de concretização humana. Do irónico azar extremado de Matthew Broderick em Eleições (1999), a um Jack Nicholson num renascido choro com o espectador em As Confissões de Schmidt (2002). Contudo, até ao seu mais recente filme, Payne apenas havia lançado uma película nesta última década. Em colaboração com um guionista estreante, sob Os Excluídos o cineasta norte-americano regressa à grande tela em extraordinário modo por aquele que é o seu melhor filme.

Num spin das premissas “hollywoodescas” do coming-of-age, isto é, de autodescoberta por adolescentes e jovens-adultos como em American Graffiti (1973) e do típico filme natalício, enquanto adota todo o estilo e apresentação retros do cinema da década de 1970, Os Excluídos parte do seu papel “meta-clássico” para se tornar num futuro clássico por si próprio. Direção modesta e técnica nostálgica servem de palco para o incrível esforço coletivo entre guião e elenco se exibir. Um apaixonado retrato cómico-dramático que, das pujantes correntes em caracterização e carga emocional disparadas, mergulha o espectador em conceitos de marginalização, luto, sabotagem e descoberta pessoais, e isolamento, com a hostilidade do nosso mundo a servir de berço.

“Os Excluídos”, de Alexander Payne / DR

Após créditos iniciais com uma qualidade granulada que simula a projeção da película em rolo de filme, um nevoso cenário estudantil introduz-se. Escola de prestígio para alunos com mais privilégios que capacidades, tem-se a Academia Barton a Dezembro de 1970. Numa pausa do seus isolados serões a corrigir testes dos seus alunos com insultos alcoolizados à mistura, Paul Hunham (Paul Giamatti), um professor de história antiga com mentalidade adequadamente retrógrada para as épocas que leciona, fica encarregue da tutela dos alunos que ficarão retidos no campus durante as férias de Natal. A preparar-se para uma entusiasmante viagem, Angus Tully (Dominic Sessa), aluno problemático no temperamento mas com notável potencial, é interrompido na sua condescendente passivo-agressividade para com os colegas excluídos, com uma chamada da mãe a informar sobre uma mudança de planos: lua-de-mel com o seu novo marido obrigaria o pobre adolescente a ter de ficar na escola. Cozinheira de longa data no estabelecimento, Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) vira o centro das atenções pela morte do seu filho no sangrento palco da guerra do Vietname. Solitário Natal de luto em Barton a espera.

Com o nosso trio apresentado, começam as atribuladas férias natalícias. Hormonas juvenis e sentimentos de rejeição brotam uma valente tempestade. Passatempos entre os alunos aprisionados passam por insultos, lutas e choro. A detestável frieza desadaptada dos maneirismos do tutor e peso asfixiante do luto da cozinheira despejam o picante no já fervoroso caldeirão atmosférico. Porém, esperanças em festas frutíferas renascem das cinzas na forma de um helicóptero a aterrar no campus com um pai a perdoar o mimado filho pela sua denominada desobediência civil; Henry David Thoreau cora em vergonha. Aceitando o magnata levar todos os estudantes a uma estância de inverno, põe-se o Sr. Hunham a contactar os pais dos miúdos, em êxtase pela possibilidade de poder voltar à paz da sua solidão. Sonhos dos protagonistas caem por terra de vez quando do lado familiar de Angus não há qualquer resposta. Ficam assim presos em Barton os nossos dois rabugentos. Tal como os seguintes tiroteios de insultos comprovam, clima mais tóxico é impossível.

Filmagens de “Os Excluídos”, de Alexander Payne / DR

Todo o panorama visual e sonoro do filme funciona em torno da sua apropriação homenageante da textura e sensação emanada pelos principais títulos de Hollywood nos anos ‘70. Apesar de filmado e exibido em formato digital, a simulação da película como rodada em celulóide é conseguida com toda a sua perdida glória rústica. A cenografia e trabalho fotográfico prestam um ambiente natalício com o aconchego nostálgico esperado. Todo o ethos cinematográfico das festividades de Natal é eficazmente recriado, servindo um estimulante contraste com as dinâmicas entre protagonistas. O áudio não escapa à qualidade granulada de tudo e a banda-sonora serve um banquete de hinos da época e contexto festivo.

Alma de todo o apaixonado ser, o guião e elenco elevam o filme a marco em cinema contemporâneo. No seu roteiro de estreia, David Hemingson combina na substância experimentação e destemor de novato com absoluta mestria em estruturação. A frescura cómica e espontaneidade natural do diálogo de célere modo entranham o espetador e o seguram firme até ao fim da viagem. A prestar o furor da obra, tem-se a amálgama de tópicos explorados num âmbito crítico desde estigmatização de saúde mental, políticas de guerra à marginalização estrutural de classes e raças; o centro da crítica. Numa atualização constante do efeito surpresa, a forma mestre como informação é revelada a partir de uma estrutura narrativa linear que não deixa descolar o espectador do ecrã, sucessivamente tapando lacunas enquanto cava outras novas. Depois, o expoente máximo do roteiro e o coração do filme, a caracterização. Da fortuna no detalhe, esta transcende o seu formato escrito, servindo viciantes personagens que assumem carne e sangue logo de início até para além da visualização. Alma gémea da escrita, tal ultrapassagem de limites é possível pelo notável trabalho do elenco numa concretização inata das figuras, com carisma e presença próprios mais química entre si absorventes de todo o ser que assiste. Sessa e Randolph revelações, Giamatti renascido. A direção de Payne limita-se a assumir modestas rédeas de intimidade e precisão no retrato humano vintage, simplicidade a líder.

Os Excluídos assume todos os elevados traços de um feito cinematográfico artístico, expoente máximo e promotor da marca de cinema norte-americana. A linguagem de alcance universal, que comunica para a sugestão de todos com honesta, complexa e apaixonada forma. Um filme que pega nas premissas e estilo de outrora, renovando as fórmulas e atingindo novos picos com o seu potencial, identidade singular criada no processo. Serve uma homenagem prudente, sem cair em tentações idealistas. É uma intemporal máquina do tempo que relembra o passado, ajuda a compreender o presente e auxilia o futuro.

Fundamentalmente, esta obra reflete os receios de solidão e propósitos de procura por contacto e calor humanos que envergonhadamente albergamos. As adversidades externas que nos arrastam e limitam até ao ponto de exaustão e desistência. Destes fatores advém o incrível e imortal poder da película, terapêutico abraço em conforto e segurança seguido de um encorajador empurrão a sensação geral.

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