“Os Funcionários”, de Olga Ravn: que futuro é esse que trazes nos braços?

por Mário Rufino,    28 Abril, 2022
“Os Funcionários”, de Olga Ravn: que futuro é esse que trazes nos braços?
Capa do livro
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Lá no frio do futuro jaz a empatia. 

Num futuro inalcançável para quem vive neste tempo, há uma nave chamada Seis-Mil. Está a milhões de quilómetros da Terra e nela convivem humanoides e humanos. Quando estranhos objectos, ou bioconfecções, são recolhidos no planeta Nova Descoberta, tudo muda. A interacção revoluciona a ordem. Uma comissão é destacada para recolher depoimentos e avaliar os efeitos dessa interacção. 

A prosa de “Os Funcionários”, publicada pela Elsinore, dá frio. O exercício intelectual de Olga Ravn (n.1986, Copenhaga) radicaliza a dependência e exploração laboral do ser humano. Uma vez ultrapassada essa capacidade, o homem deixa de bastar e o humanoide emerge dos casulos para optimizar o lucro. Ravn não vai directamente à jugular do capitalismo, mas a crítica é evidente. 

“Porque é que estas coisas me passam pela cabeça se o meu trabalho é sobretudo técnico? Porque é que tenho estas ideias se estou aqui sobretudo para aumentar a produção? Em que medida é que estes pensamentos são produtivos? Será um erro na atualização? Se assim for, gostaria de ser reiniciado.”  

“Os Funcionários”, de Olga Ravn

O vocabulário empresarial — pleno de eufemismos a esconder a liberdade moída pelos mecanismos laborais — espelha a frieza da partenogénese. Os funcionários estão subjugados por regras e discursos inventados em parte incerta. E se as dinâmicas de grupo violentam as necessidades individuais, é, no entanto, no discurso que a ditadura se instala. 

“Como vos posso dizer não se foram vocês que me deram um emprego?” 

“Os Funcionários”, de Olga Ravn

O mosaico narrativo composto pela autora dinamarquesa dá-nos uma visão poliédrica do ser humano, dos humanoides e de como uns e outros se confundem. A principal distinção parece ser a morte, o fim de tudo, sem qualquer possibilidade de reactivação para os seres biológicos. Fora isso, humanoides parecem absorver o caos inerente a cada ser humano, embora os sentimentos erráticos tendem a ser eliminados. 

“Há um elemento caótico em todas as ações futuras. Ao contrário de muitos colegas meus, não penso que a única solução para o problema consista em descontinuar a secção humana da tripulação. Os humanos são porventura o elemento caótico que mantém o mundo vivo.”

“Os Funcionários”, de Olga Ravn

A guerra entre humanos e humanoides é insidiosa até se tornar ostensiva. Nos testemunhos reunidos pela autora — fazem lembrar a recolha de Svetlana Alexievich em “Vozes de Chernobyl” mas em versão sci-fi com rasgos de Ridley Scott — há muito espaço em branco. A numeração dos testemunhos permite perceber que nem todos foram salvos do apocalipse espacial. O leitor é chamado a preencher o não dito, é chamado a intuir as palavras que não foram endossadas. 

Na Nave Seis-Mil existem as mencionadas “bioconfecções” misteriosas e disruptivas. A relação de cada elemento do grupo com os objectos é ímpar. A voz coral fragmenta-se em relações individuais com esses estranhos objectos. Se analisarmos bem o discurso nos depoimentos, vemos que a relação estabelecida é idêntica à de um ser humano, fora da ficção, com uma obra de arte. 

A relação com a arte provoca reacções e caos. A linha direita depressa se entorta, depressa ganha nuances e tons miscigenados. O previsível, tão apreciado pela economia, é rasgado. A emoção baralha a parte executiva e o ser amplia as capacidades emocionais e cognitivas. A partir do momento em que interroga, o paraíso de outros começa a desmoronar. A pergunta multiplica-se, expande-se, e o que era estabelecido por uma força dita superior, tantas vezes abstracta, implode. 
Quando a arte interpela, eis que a realidade se transmuta.  

Olga Ravn dá-nos uma pista muito importante no epitexto inicial ao agradecer a Lea Guldditt Hestelund: 
“Este livro não existiria sem as suas instalações e esculturas.” 
 
Um ovni. Eis o que “Os funcionários”, de Olga Ravn, parece no meio de narrativas de corte clássico e e canónico. A autora joga no limite do pronunciável, com discurso reduzido ao osso e contando com a parceria entre texto e leitor para complementar o sentido. 

É um exercício intelectual bem gizado, mas a empatia com os personagens é menor que a do mais frio dos humanoides. E é essa lacuna que impede o livro de ser memorável. 

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