Os lesados da Disney

por Henrique Pinto de Mesquita,    8 Maio, 2025
Os lesados da Disney

Dizem-nos: «Um dia tudo se resolve». Garantem-nos: «Vais acabar por ser feliz». A última publicação da Dona Alzira no Facebook prometia-lhe: «Um dia tudo vai dar certo».

(Passou uma semana morreu de cancro do pâncreas.)

Aí está, à nossa espera, a felicidade: o senhor vira à direita, passa a rotunda, cruza a esquina et voilà. Imaginamos a felicidade como um portal em que se entra e não mais se sai; uma tatuagem que cravamos no peito e que para sempre nos acompanhará. Um momento — em que nos amam de volta, em que conseguimos aquele trabalho — a partir do qual tudo passará, finalmente, a fazer sentido: «Olhe, desculpe, mas eu agora sou feliz, está bem?».

Creio que não, senhor: que não é assim, não se a encontra, não se a agarra. Que não há início. Não existe isso de chegar o «dia inteiro e limpo» a partir do qual se «é feliz». Primeiro não sé «é feliz», vai-se sendo. Depois, existem dias: uns mais inteiros, outros mais limpos — e outros, simplesmente, não. A felicidade é uma tablete de chocolate que se come nham nham nham e sabe bem nham nham nham durante um bocadinho — até o sabor passar.

Garante-vos este sábio de 27 anos: enganam-se os que procuram a catarse — não existe. Não virá, um dia, uma betoneira entornar por cima das vossas cabeças uma massa pastosa de felicidade eterna.

Mas a culpa de a esperarmos não é nossa: é desses senhores dos filmes e das músicas, que passaram a infância toda a prometer-nos finais felizes e perfeitos. É a Bela que fica com o Monstro; são o Simão e a Ana Luísa que ficam a fazer peões de mota; são as cançõezinhas do Sufijan Stevens.

Somos os lesados da Disney: crescemos com a ideia de que temos um direito inalienável à felicidade, olhamo-la como uma profecia por cumprir, um lugar a que inevitavelmente chegaremos. «É uma questão de tempo». Pois e se não for — e se a vida for isto? E se não conseguirmos «ser felizes»?

Aos 80, a velhota do Facebook ainda acreditava que ia «ser feliz». É mais triste do que bonito. Essa espera manhosa pelo dia em «que tudo vai dar certo» é um convite ao sofrimento. A ânsia pelo momento em que a vida passa a ser cores pastel, sexo e compota é trágica. A pressão de termos de «ser felizes» estraga a pequena e envergonhada felicidade que às vezes espreita.

Também é humano não se ser feliz: a tristeza faz tão parte de nós como os braços. E porque haveria alguém, com os seus inevitáveis braços, de rejeitar os seus braços? Não estamos sempre felizes: muito bem — e qual é o problema? Ser-se feliz é overrated.

A felicidade nunca nos pousa nas mãos — sempre nos escorre pelos dedos. Que bom se formos a tempo de os lamber. Se não, ficam os dedos, inevitáveis dedos, a serem o que são: dedos. Assim é a vida: não se é feliz, vai-se sendo: «Felizes, nós? Ali, talvez, talvez. Naquela terra, daquela vez».

Recomendações:

Não é por serem meus amigos — flex —, mas os Ledher Blue lançaram este mês o seu álbum de estreia: Fait Divers. Rockalhada boa, com letras bonitas e umas referências quaisquer a D. Sebastião. Ouve-se e sente-se o cheiro do chão com a cerveja da noite anterior: é bom. Ainda na culturinha, recomenda-se a nova exposição de fotografia de Jeff Walls no MAAT, em Lisboa: ali, tudo é produzido, mas nada é um produto. Nos livros voltei a namorar um dos maiores cronistas portugueses vivos, por vezes esquecido neste campo: As Crónicas, de António Lobo Antunes (ed. Dom Quixote, 2021).

Mas o que realmente nos interessa é que as melhores lulas do ano já as comi: no Bar do Açude da Ribeira, concelho de Arronches, Alto Alentejo. Os croquetes de alheira com molho de manga ou sei-lá-o-quê também têm muita responsabilidade nesta recomendação. Tudo isto numa esplanada completamente banal — banal é o que queremos — à beira-rio, onde o melhor que se passa é não se passar nada. Uma paragem feliz para quem anda a brincar à raia.

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