Os limites
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Estamos a 9 de Dezembro de 2018, quase no final da segunda década do novo milénio, tratam-se doenças que ainda há meia dúzia de anos se pensavam incuráveis, viaja-se pelo mundo em tempo record e a preços mais acessíveis do que um jantar romântico, temos máquinas que fazem em segundos o trabalho que antigamente demorávamos meses a concluir e mesmo assim amanhã lá sai mais um programa [Prós e Contras, na RTP1] que versa o debate sobre os limites do humor.
Já não há pachorra. Sou comediante, vivo disto vai fazer 8 anos, consumo regularmente comédia há mais de 23, sou apaixonado pela arte, pelos mecanismos de escrita e entrega, pelo processo criativo, pela comunhão de um grupo de desconhecidos que alivia a sua tensão a rir ao mesmo tempo e da mesma coisa como se fossem velhos amigos, pela maneira como ajuda a lidar com a vida tão pouco divertida que temos… enfim, sou um daqueles gajos chatos que na mesa de café vai, inevitavelmente, recomendar séries, filmes e especiais de stand up a toda a gente. E mesmo eu, um geek irritante da comédia, já não tenho paciência para voltar a discutir os limites do humor.
No entanto, apesar de achar esta discussão irrelevante, há uma coisa que não me sai da cabeça: porque raio é que, no meio de tantas “formas de arte” existentes, é o humor actualmente a mais escrutinada? Posso estar enganado ou esquecido (acontece muito quando o dealer não é de confiança. Aliás, pequenada que se quer iniciar nos caminhos do vício: escolham sempre bem o dealer. Nem sempre o mais barato é o melhor e meterem-te a jogar FIFA enquanto pesam a coisa não faz do produto melhor. São os conselhos do Tio Cruz. O que não é o Carlos), mas não me lembro de haver tantos debates sobre os limites da pintura, da literatura ou do teatro, por exemplo. Quer dizer, houve discussões e limites impostos, mas em regimes totalitários e/ou de cariz religioso, o que é capaz de querer dizer mais sobre a mentalidade vigente do que muitos querem admitir, mas hoje em dia é raríssimo ver alguém a discutir a forma como um Miguel Torga retrata um cão n’Os bichos. Bom, talvez nas reuniões do PAN se discuta e se ofendam porque o Nero não é um rabanete, mas fora isso é invulgar.
E porque é que isto acontece? Porque, num mundo cada vez mais sensível ao que é acessório e indiferente ao que é essencial, o humor magoa. Num mundo cada vez mais egocêntrico, onde as pessoas vivem fechadas para dentro, na sua bolha de realidade e de valores absolutos, o humor é a pedra que racha o telhado de vidro de uma suposta moral e mostra o ridículo dos protocolos sociais e das vidas vazias que levamos. E fá-lo a brincar, o que ainda é pior porque escarnece de dogmas que nos são queridos e sob os quais construímos a nossa identidade. É a alegoria da caverna aplicada à realidade. Quem é que quer viver a vida a pensar que as coisas são como são e, num dia de folga, ver um/a maluco/a no bar onde foste beber uma cerveja para esqueceres aquele trabalho que odeias a dizer “Well, look at the drugs we use (…) there are essentially only two drugs that Western civilization tolerates: Caffeine from Monday to Friday to energize you enough to make you a productive member of society, and alcohol from Friday to Monday to keep you too stupid to figure out the prison that you are living in” (Bill Hicks)? Isto não é bom para ninguém, nem para o pobre diabo que a meio de um set de stand up percebe que a vida que leva e odeia se calhar é a que programaram para ele, nem para o regime existente que se alimenta da estupidificação e automatização social.
“Mas Cruz, isso é só um nicho da comédia. Nem todos os humoristas têm material sensível a mudar mentes. Há aqueles que são só ofensivos e/ou maus”, diz o leitor que adora interromper o meu raciocínio com inputs não solicitados. Certo. Tal como há pintores que criam coisas absolutamente incríveis, como “O Nascimento de Vénus”, e outros que se limitam a desenhar pilas no caderno e fazem telas com a técnica do guardanapo que expõe na Junta de Freguesia e nunca vi um debate na TV sobre a validade do seu trabalho. E é isso que me faz espécie. Essa obsessão recente pelo humor, a sua validade, quem é que o pode fazer e em que moldes. Mais, não me lembro de ver ninguém a investigar a vida deste tipo que cola guardanapos numa tela na esperança de encontrar um quadro ofensivo para o descredibilizar e com isso impedir que a Junta de Freguesia lhe abra o hall de entrada e o proíba de expor a sua obra, já no humor (e recentemente no cinema) é o pão nosso de cada dia. Mesmo esta semana vimos isso acontecer com o Kevin Hart, um humorista tão inócuo que tiveram de ir até 2011 para encontrarem alguma coisa que o entalasse.
Tudo bem, os tweets do Kevin Hart são maus, mas e então? Já ouviram os primeiros álbuns de INXS? Horríveis. Mas tiveram tempo para amadurecer e passado uns anos saem-se com o “Kick”. Porque raio um músico pode ter tempo para amadurecer e um comediante é atacado por ter falhado uma piada em 2011, mesmo sendo hoje uma das maiores e mais queridas estrelas de Hollywood? Não faz sentido. Isto é o mesmo que agora alguém procurar vídeos do Jorge Palma na infância, encontrar um em que ele aos 6 anos está a cantar o “Atirei o pau ao gato”, ficar ofendido, expor o vídeo acusando-o de crueldade animal, ele ser obrigado a pedir desculpa e a editora retirar-lhe o contrato discográfico porque não se pode ligar a alguém polémico. Ridículo e impensável, não é? Não, na comédia não é.
E o pior disto tudo é que, na verdade, sempre houve uma espécie de atenção especial ao humor, basta lembrar que cá no nosso cantinho vimos o Herman a ser censurado e cancelado por ter “ido longe demais”, mas essa atenção (atrevo-me a dizer censura) era dada por uma direita conservadora que sempre viu a comédia como algo profano, no entanto hoje a própria esquerda, o bastião da liberdade de expressão, legitimou os conservadores ao fazer exactamente o mesmo. Hoje, tanto a direita conservadora como a esquerda progressista têm a mesma atitude perante o humor, tanto que a comédia transformou-se, praticamente, num campo de batalha em que progressistas procuram armas de arremesso para matar comediantes mais conservadores e os conservadores procuram ogivas para liquidar comediantes mais progressistas. No meio a levar com os estilhaços fica o humorista. O bom é que, sem o saberem, ambos estão a criar material para muito comediante em crise criativa. E isto é mesmo a única coisa boa que sai desta luta ideológica que me faz lembrar mais os tempos em que media a pila e a comparava com os colegas no balneário, sendo neste caso do humor uma pila moral, do que uma verdadeira preocupação com a evolução da arte e da sociedade. E nesse aspecto tenho a dizer, quem me dera que a minha pila tivesse metade do tamanho da minha pila moral.
Resumindo um texto que já vai longo e alimentado a Guinness: é ridículo este debate. É ridículo este escrutínio. É ridícula a dualidade de critérios entre a comédia e outras artes. É ridículo o tempo que se perde a debater uma coisa que não é para ser debatida, mas apreciada. Mas, mais do que tudo, é ridículo estabelecer limites para uma coisa tão abstrata como o humor quando ainda hoje não se estabeleceu um limite para o preço de um café num estabelecimento comercial. Estou-me bem a marimbar para os limites da comédia, mas pagar 2€ por um café no bar para onde vim escrever isto parece-me bem mais grave do que qualquer piada de violação. E, ao contrário de todos os espectáculos de comédia que vi até hoje, bons ou maus, ofensivos ou inócuos, posso garantir que aqui não vi ninguém a sorrir depois de receber a conta.