Os meus amigos são formiguinhas a passear no meu coração

Os meus amigos são formiguinhas a passear no meu coração. Já têm as suas rotas, sabem para onde ir e como lá chegar. Já o conhecem: sabem com que pé entrar, que há zonas em que devem andar de bicos de pés e outras onde podem dançar.
São formiguinhas a passear no meu coração, os meus amigos. Um dia passa um, outro dia outro. Reconheço-os pelos caminhos que escolhem quando por lá passeiam — optando por um lado ou pelo outro, distinguindo-se na passada — e pelos chapeuzinhos festivos que trazem.
Às vezes estão lá vários ao mesmo tempo: escolhem um cantinho ao sol, estendem uma toalha de piquenique e passam tardes a jogar às cartas em cima do meu coração. Gosto muito quando fazem isso. Aqui em cima ouço-os a rir e a chamar nomes uns aos outros. Às vezes fumam e bebem tanto que também me intoxicam — e eu feliz.
Fico quieto: e só sei que isto acontece porque sinto no coração o quentinho que só quem tem a sorte de ter lá amigos pode sentir.
Há amigos tão presentes que têm um cantinho que todos os outros já sabem ser só seu. Quando lá passa um forasteiro, o residente reconhece-o e pergunta-lhe: «Estás cá?». «Sim, sim, ele lembrou-se da viagem a Estrasburgo, mas isto vai ser rápido».
E passado um pouco deixo de pensar na viagem a Estrasburgo e termina a cruzada dessa formiguinha no meu coração. Cada um vai à sua vida. Talvez nunca mais a veja.
(tal como não nos apercebemos que aquele era o último céu estrelado de Melides, também não sabemos se esta é a última vez que pensamos neste amigo.)
Os meus amigos são formiguinhas a passear no meu coração, mas eu também sou uma formiguinha que passeia no seus. Sei por onde ir no coração do Gaspar; sei por onde não ir no do Rui. Às vezes vou para lá sozinho e encontro outras formiguinhas: junto-me a elas. Conspiramos sobre o sítio onde estamos: «Este coração está a precisar de nós?». «Sim, traz vinho» — e assim se passa uma tarde de trabalho, acalmando ritmos cardíacos, pondo rolhas nas fugas de amor e combatendo passados que teimam em reaparecer.
Também o coração tem estações: encarnado, azul, cinzento (se se resistir ao azul) e logo volta ao encarnado. O motor é a vida: os pais que morrem, as namoradas que partem, os amigos que se vão, a tristeza porque sim, a felicidade porque não. No meio deste spaghetti, deste arco-íris de tons confusos, quem nunca cede às estações são as formiguinhas — fortes, incansáveis, amigas, a fazer piscinas e sacar peões nos nossos corações. Garantindo vida para lá da tormenta.
São quem sempre volta e quem sempre faz falta quando não está. Esse é o seu valor: todo. Gosto muito de ter formiguinhas a passear no meu coração — não sei de que vale tê-lo se não for para as receber.
Sugestões do cronista:
O Primaversa Sound do Porto está a largar cartas e parece ter passado o Alive como o grande festival urbano de Portugal. As muitas posers não conseguiram estragar os três grandes concertos desta edição: Parcels, Jamie XX e Capitão Fausto. Fontaines D.C. deram o concerto com menos rock dos últimos três em Portugal, mais por culpa da organização do que deles: é que havia uma zona VIP em frente ao palco. Recomenda-se, por isso, o festival de música e variedades Primavera Sound do Porto.
A Sopa de Cação mais carinhosa do mundo provei-a este mês no restaurante Pompílio, em São Vicente e Ventosa, freguesia do concelho de Elvas (mais uma vez, no Alto Alentejo: o sítio onde melhor se come em Portugal, palavra de minhoto). Nos livros, aproveito a mudança de casa para ler The House in Good Taste (Rizzoli, 2004), de Elsie de Wolfe, a jesus-crista da decoração.