Os outros é que são populistas
O Verão que antecede o Outono das eleições é um dos períodos mais execráveis e penosos da democracia portuguesa.
Se a política é profissão então estabelecer-se como deputado será emprego. É mesmo a colocação mais cobiçada do ofício. Eleito por lista, portanto sem ter que dar muito a cara, sem responsabilidades executivas que possam comprometer, com a responsabilidade individual diluída no grupo parlamentar como carapau no cardume, basta ao sufragado que se alivie em plenário de duas ou três banalidades genéricas, que se mostre enxofrado ou resoluto nas comissões, que proponha umas moções inócuas a favor da região donde proveio, dessas que só vão atulhar ainda mais a legislação em vigor, para que singre comodamente os 4 anos da legislatura e dela aufira todas as regalias, certificadas ou consuetudinárias.
Um posto com tantas venturas é evidente que instiga os profissionais da arte a ele concorrem em chusma e a disputarem-no sem quartel. É assim que este período estival de formação das listas a concurso extravasam numa proliferação de zaragatas intestinas de caixão à cova e rixas pessoais de faca na liga, de tal modo acirradas – afinal luta-se pela vidinha – que os beligerantes abdicam de qualquer simulacro de decoro e tino. Nas concelhias partidárias os candidatáveis esgadanham-se entre si por um lugar elegível na lista distrital que depois de árdua e ferozmente cozinhada em guerra aberta entre as ditas concelhias é remexida pelo impante critério da direcção nacional do partido, resolvido a pôr-lhes à cabeça um figurão qualquer que há-de dar com a comarca por GPS.
O regime de “democracia representativa” – o nosso e o melhor ou menos mau dos que se foram experimentando – pressupõe um contrato social em que o cidadão, reconhecendo-se sem tempo nem competência para o exercício de alguns dos seus direitos e deveres, delega esses poderes num representante no qual é suposto confiar a defesa dos seus interesses e dos interesses da sua comunidade, assim como a persecução das ideias que defende para o bem geral.
Chegado o dia das eleições como pode o cidadão sentir que não está diante de uma impostura? Se nas listas dos partidos constam os nomes de uns fulanos provenientes de um processo de selecção truculento durante o qual o critério da boa representatividade foi de todo posto de lado, como pode o cidadão sentir-se por eles representado?
Muitas vozes vêm alertando para os perigos do populismo, ectoplasma ideológico ainda inorgânico mas que vai grassando a olhos vistos. Sobre o que é exactamente o “populismo” é matéria em discussão, sendo que em termos muito latos considera-se “populista” aquele que em nome da “moral” – talvez o mais evasivo, insidioso e capcioso, por isso mesmo perigoso, dos conceitos que esvoaçam por aí – reclama para si uma ligação directa com a vontade autêntica do “povo” – palavra que no fundo não quer dizer nada – arvorando-se como seu mandatário.
Sucede que tal discussão está inquinada pela má-fé e o conceito de populismo redundou numa exclamação insultuosa brandida contra inimigos políticos. As esquerdas apontam para o carácter populista da direita, ou de todas as ideias que não sejam de esquerda, e as direitas, fazendo por disfarçar os seus tiques providencialistas, retrucam que populistas são as esquerdas ditas “populares”.
Perante esta troca de recriminações, o observador consciencioso não deixará de reparar que a acusação de populista é uma tentativa de relegar para a periferia, ou seja para fora do aparelho institucional, se não mesmo para a ilegalidade, todos aqueles que não dançam a música que a orquestra “deve” tocar.
Por outro lado, o que é mais grave e cínico, além de assaz ordinário, o alarme em torno do populismo tornou-se um meio de os incumbentes do regime sacudirem a água do capote. Independentemente da essência e das origens do populismo, diligência muito platónica que conduz a ilações tão evanescentes quanto absolutórias, as causas do fenómeno estão bem arreigadas nos comportamentos e processos da corporação política e no sentimento de repulsa por eles provocado.
Por exemplo, a maneira como são constituídas as listas eleitorais.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.