Os ponteiros que se movem, Édouard Louis e os sonhos de Han Kang

por Diogo Rocha,    27 Outubro, 2025
Os ponteiros que se movem, Édouard Louis e os sonhos de Han Kang
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Parto de três encontros que sugeriram convergências possíveis, para compor este esboço: os ponteiros que se movem no presente, Édouard Louis e os sonhos de Han Kang. A violência, diz-nos Édouard Louis em entrevista, é como uma corrente elétrica, algo que passa de uns para os outros, numa espécie de movimento inercial, possível pela manutenção das condições (materiais, sociais e culturais?) que o permitem – um corpo em movimento tenderá a continuar em movimento, verificando-se as mesmas condições. Poderemos experimentar outras explicações?

“Há a violência que o atual modo de produção impõe, que disciplina os corpos, as relações e os modelos de significação, que veda caminhos a uns, não para abrir a outros, forçosamente, mas porque é necessário que esses caminhos se mantenham vedados para que a máquina possa continuar a sua marcha eterna até à aniquilação coletiva.”

Talvez consigamos afirmar que a violência não é uma característica, um predicado, replicando a crítica de Immanuel Kant aos argumentos ontológicos a propósito da atribuição da existência enquanto qualidade, mas antes o pano de fundo a partir do qual a realidade se atualiza, de forma irremediavelmente dialética. Talvez esta ontologia da violência seja demasiado ambiciosa, talvez seja necessário baixar o potenciómetro e propor uma outra tentativa de explicação: a de a violência ser uma gramática de interpretação da realidade. Dispensando-me de qualquer necessidade de justificação sobre este raciocínio, não me parece desadequado propor três tipos/manifestações de (uma mesma?) violência: a que se impõe a um nível estrutural, sistémico, se preferirmos, a que se impõe a um nível micro ou relacional, e aquela que parece ser sentida subjetivamente, que parece brotar da própria experiência, mas que, contrariamente às outras, é autoimposta.

Há a violência que o atual modo de produção impõe, que disciplina os corpos, as relações e os modelos de significação, que veda caminhos a uns, não para abrir a outros, forçosamente, mas porque é necessário que esses caminhos se mantenham vedados para que a máquina possa continuar a sua marcha eterna até à aniquilação coletiva. É a violência da positividade, como nos lembra Byung-Chul Han, que impõe a afirmação constante, que adiciona incrementos aos balizamentos artificias, já opressores, do chronos. Com ela coincide outro tipo de violência, aquela que se revela nas interações quotidianas, das mais explicitamente opressoras às outras em que a natureza da violência é mais sub-reptícia e difícil de decifrar, que muitas vezes se manifesta a nós através de uma estrutura paradoxal que parece unir, nessa relação, a própria violência ao polo afetivo oposto que a mesma parece repudiar (aceitação/repúdio, inclusão/exclusão). Ora, ambos os fenómenos são acompanhados de outro: o da violência subjetivamente imposta. Talvez seja esta a mais enigmática das três, por não se perceber bem de onde vem, apesar de a sua origem ser certa, por não se compreender as suas raízes, apesar de serem elas que nos sustentam, e por, ao contrário das outras, termos mais dificuldades a operar o esforço imaginativo em que projetamos a sua abolição, uma vez que não fica de lado a hipótese de ser apenas mais uma dimensão da alienação que experimentamos. Qual o seu fundo? Será ela um sintoma, uma consequência, uma reação ou uma força de propósito próprio? Poderemos encontrar nas outras uma chave explicativa para ela? Estas questões levam a outras: serão elas três fenómenos distintos ou a mesma categoria sentida em diferentes esferas? Será o combate a alguma mais premente ou devemos procurar a manutenção de uma frente bélica comum? Serão elas contingentes, ou uma fatalidade constitutiva do nosso ser social?

Estas e outras questões manter-se-ão, por agora, sem resposta, pairando uma outra sobre nós: como viver num mundo onde ela abunda?

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