Os sonsos e as sonsas
Pior do que uma pessoa com mau carácter, que se topa logo nas primeiras acções incorrectas, só mesmo um/a sonso/a. É que os sonsos e as sonsas são igualmente maldosos e desprovidos de empatia pelo próximo, igualmente munidos de ego e mau carácter inabaláveis, mas, ao contrário dos vilões, parecem bondosos.
A cara do sonso transpira ingenuidade e sinceridade, a sua voz é melíflua (são conhecidos também por “falinhas-mansas”) e têm sempre as palavras certas para oferecer quando mais precisamos. Por vezes, o sonso aparenta até uma certa timidez, baixa os olhos perante um pormenor escabroso da nossa vida, num gesto de representação convincente e digno da estatueta de Hollywood. Contudo, os sonsos são a pior espécie de gente. J. D. Salinger usou muitas vezes nos seus livros a palavra phony (fingido) para caracterizar certos personagens, e é precisamente isso que queremos dizer quando falamos de sonsos e de sonsas, fingidos e dissimulados. Todavia, mais cedo ou mais tarde, o fingimento cai-lhes por terra; nem que seja por cansaço, lá se lhes descobre uma incoerência na personagem.
Já conheci vários sonsos e sonsas. Quem nunca teve sonsos amigos ou sonsos amantes de curta duração? Conhecidos, certamente que às dezenas. Uma das sonsas que mais me marcou fez comigo a faculdade de Economia. Fingia-se amiga, era bem doce no trato. Certo dia, porém, soube que me andava a minar as costas. Fazia de propósito para me trocar as voltas e me deixar malvista pelos colegas. Se eu tirava nota mais baixa do que ela num exame, mostrava-se entristecida e dizia que apenas tivera sorte, e que eu era muito mais inteligente do que ela, mas nunca me emprestou os apontamentos; por mais que insistisse, arranjava sempre desculpas. Um dia, sem querer, enviou-me uma mensagem que era para outra pessoa. Uma mensagem a escarnecer de mim, basicamente, a chamar-me estúpida. Embora se tenha desfeito em mil perdões, que tinha sido um erro, que não era de mim que falava, e blá, blá, blá, a sonsice acabou-se. Nunca mais deixei de ver a víbora.
Mais tarde ou mais cedo, vê-se que os sonsos têm, afinal, sal a mais e que se estão nas tintas se são prejudiciais ao coração de alguém. O sonso é um manhoso abaixo do sociopata, um cretino abaixo do idiota, um dissimulado abaixo de um grande mentiroso. Podia ser uma brincadeira de sinónimos, mas não é: os sonsos e as sonsas estão mesmo abaixo das pessoas exponencialmente maldosas. Jogam baixo e fingem que ajudam, aparentam gostar do outro e fazem-se desentendidos sobre vários assuntos para mostrar que são ingénuos. São invejosos e fazem-se de amigos, por interesse pessoal, claro. Mesmo que não queiram aquilo que o outro tem, só não querem que o outro o tenha. Basicamente, detestam a alegria dos outros. Não dão um passo sem pesar o benefício próprio, são interesseiros até à última casa do jogo, e nunca admitem a sua essência, pois claro, ao contrário dos declaradamente maus. Mesmo quando se lhes descobre a careca, nunca assumem o mal que fizeram. São sempre vítimas de qualquer coisa, gostam de parecer o coitado da história e de passar por boas pessoas, e até fazem parecer que a culpa é de quem foi enganado. São uma sub-raça de gente, uma espécie de contrafacção dos maus, que acaba por ser pior porque é cobarde e rasca. Talvez seja isso que faz com que sonsos e sonsas pareçam a mais inferior das raças — são ordinários.