Os vencedores e o espírito do Festival de Cannes
Cai o pano sobre Cannes 70. E o que tivemos nesta edição que ficou muito aquém do luxo do ano passado. Até porque os mestres ficaram muito aquém.
A coisa resumida fica assim: Ruben Ostlund leva para a Suécia a Palma de Ouro pelo sensacional The Square. As duas horas e vinte de dois minutos em que o coração bate mais rápido que as 120 BPS de Robin Campillo, vencedor do GP do Júri, e provoca mais do que o desencantado, mas inesquecível, Loveless, de Andrey Zvyagintsev, Prémio do Júri.
Cannes para esquecer
E as deceções de Cannes? Ui. Arnaud Desplechin (no fraquito Les Fantômes d’Ismael), Todd Haynes (Wonderstruck), Bong Joon Ho (Okja), Noah Baumach (The Meyerowitz Stories) – estes dois produtos Netflix não mostraram a qualidade para criar um embaraço do júri desagradado com a decisão do straight para tv. Chega? Não. Michael Haneke ficou uns furos a abaixo com o tão aguardado Happy End (antes de começar, a 3ª Palma estava-lhe adjudicada), Yorgos Lanthimos safou-se com o prémio de argumento (por The Killing of a Sacred Deer) a par de Lynn Ramsay (You Were Never Really Here) – daqui nada a dizer, já que, pelo menos no papel, a história tem o seu vigor. Rodin?! O melhor é nem falar – é o desastre. Sofia Coppola foi brindada pelo júri com o prémio de realização (imerecido), em The Beguiled, o tal remake do original de Ritual de Guerra, de Don Diegel, em 1971 ainda com direito a um prémio especial a Nicole Kidman nesse filme. Seria por ter passado por Cannes a promover quatro filmes (e ao todo com duas horas para aturar a imprensa)?
O nosso festival
Ainda assim, viver um festival de Cannes (contas feitas, foi a nossa 17ª edição, cuja primeira foi em 1999, com um único ano de interrupção) é, como explica Thierry Frémaux no seu livro Sélecion Officielle, lá para a pág. 602, no final, onde se lê Venir à Cannes, c’est obtenir um peu d’immortalité. Sublinhada a devida distância do homem em quem repousa a tarefa de por de pé o mais importante festival do mundo – este seu diário prova essa capacidade e disponibilidade -, viver por dentro destes 11, 12 dias por ano é um pouco isso, passar para o lado de lá da realidade, algures entre a tela do ecrã, sobretudo quando temos a possibilidade de privar e trocar impressões com verdadeiras estrelas, em entrevistas, mas também a sensação de fazer parte de um circo de algumas centenas de amigos e colegas que gravitam em torno deste ambiente e tentam (às vezes com um esforço incompreensível) fazer disto profissão.
Os momentos do festival
Terá sido então o gorila, a longa performance de Terry Notary que se tornou demasiado real, a dar a Palma a Ostlund? Nem por isso. Mas foi um dos momentos do festival. Ou todos os acidentes do percurso do notável Claes Bang até abrir os olhos e ser capaz de perceber o verdadeiro significado da sua vida de galerista, pai, vizinho e cidadão. Só assim será digno de pisar The Square, e respeitar o significado da obra de arte contemporânea, adquirida para o museu em que é curador, e dentro do qual tudo é permitido fazer.
Ficou-nos na retina e no ouvido a energia e vitalidade com que os seropositivos de 120 Battements par Minute assumiram o ativismo da sua causa pela sida e pelo tratamento. Tal como o desencanto da vida numa sociedade cada vez mais individualista, como a moscovita, em Loveless, de Zvyagintsev.
Como se previa, Diane Kruger estava marcada para o prémio de interpretação feminino, em In the Fade, ao assumir a vingança do atentado neonazi que vitima o marido turco e o filho de seis anos. Joaquin Phoenix terá ficado surpreendido, tal como a cineasta escocesa Lynn Ramsay, por arrebatar a interpretação masculina, em You Were Never Really Here. Ele esteve lá, com o seu corpo deformado, marcado, desfocado, provavelmente a expiar pecados da alma e a proteger uma menina de males piores.
Vivemos ainda outros momentos
O momento Netflix – Abriu o festival com a polémica da reserva da exibição para o serviço streaming. Mas fechou com os filmes fora dos prémios. Por desmérito próprio.
Os momentos segurança – A paranóia do terrorismo que tomou conta da cidade. Com revistas e detetores de metais antes de cada sessão e a banalização de tropas de intervenção a passear de arma automática por todo o lado ou drones a suscitarem a curiosidade das gaivotas. Diz que a marinha de costa também estava alerta… E a forma natural como tínhamos de lidar com tudo isso.
O momento ameaça de bomba – Antes de uma sessão, numa altura em que os cerca de 2 mil jornalistas já aguardavam nas filas diante à entrada da sala Debussy, eis que o atraso acaba por originar um pedido de afastamento de todos devido a uma ameaça de bomba. Só a pronta intervenção de Thierry Frémaux resolver o imbróglio.
O momento Naomi Kawase – Radiance é o poema sensorial de Naomi Kawase que nos ensina a ver cinema apenas pela descrição das imagens que é indicada para invisuais. A sonora mais bonita.
O momento Ozon – Uma provocaçãozinha com o tal insert do plano de um exame ginecológico que exibe o interior da vagina da personagem de Marine Vacht, em L’Amant Double, refletido num racord com o seu olhar verde da atriz. Lembrámo-nos de Buñuel…
Os momentos Godard – Sim, tivemos Godard. Não o próprio, mas a caricatura de Louis Garrel, em versão humorada por Michel Hazanavicious, em Le Redoutable. O verdadeiro apareceria, em pensamento apenas, no notável Visages Vilages, da grande Agnès Varda, em parceria com o fotógrafo JR.
O momento Loznitsa – A delirante sequência onírica que passa em revista o passado russo no revelador A Gentle Creature.
O momento The Square – A sequência do gorila (Terry Notary) à solta numa receção até deixar os convivas à beira de um ataque de nervos.
O momento de Portugal – As três horas de A Fábrica de Nada, sem tirar um minuto.
Palmarés de Cannes 70º
Palma de Ouro: The Square, Ruben Ostlund.
Prémio do Aniversário – Nicole Kidman, em The Beguiled
Grande Prémio do Júri: 120 Battements Par Minute, de Robin Campillo
Prémio de Melhor Realizador: Sofia Copolla, por The Beguiled
Prémio do Júri: Loveless, de Andrey Zviagintsev
Prémio para melhor guião: Yorgos Lanthimos, por The Killing of a Sacred Deer, ex aequo Lynn Ramsay, You Were Never Really Here.
Prémio de melhor atriz: Diane Kruger, em In the Fade
Prémio de melhor ator: Joaquin Phoenix, em You Were Never Really Here
Câmara de Ouro – Léonor Sérraille, em Jeune Femme
Prémio FIPRESCI – A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho
As entrevistas que fizemos
O festival de Cannes corre sempre em paralelo com uma série de entrevistas, algumas através de nomeação das distribuidoras nacionais, outras tratadas diretamente com os agentes. Mesmo num ano não muito agitado e mais selecionado – o também nos permitiu perder menos filmes (sim, porque também há que escrever), o gravador de voz do nosso smarthphone regista as seguintes entrevistas (ordem cronológica):
Pedro Pinho (A Fábrica de Nada – em Lisboa)
Charlotte Gainsbourg (Les Fantômes d’Ismael)
Andrey Zvyagintsev (Loveless) + Atores
Agnès Varda + JR (Visages Vilages)
Takashi Miike (Blade of the Immortal)
Tilda Swinton + Seo-Hyun Ahn (Okja)
Bong Joon Ho + Jake Gyllenhaal (Okja)
Paul Dano + Lily Collins (Okja)
Kornel Mundruczu (Jupiter’s Moon)
Bruno Dumont (Jeannette)
Marine Vacht + Jérémie Renier (L’Amant Double)
Sergei Loznitsa (A Gentle Creature)
Diane Kruger (In the Fade)
Fatih Akin (In the Fade)
Artigo escrito por Paulo Portugal, publicado no nosso parceiro Insider Film