Papillon e a arte de desmontar o hip-hop sem o desvirtuar

por Samuel Pinho,    25 Maio, 2018
Papillon e a arte de desmontar o hip-hop sem o desvirtuar
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Papillon é um nome que dirá pouco ou nada a quem não siga com afinco o mundo das rimas em Portugal. Para quem gosta, é o liricista e frontman dos GROGNation (por sinal, um dos mais celebrados colectivos de hip-hop). Para quem não gosta mas conhece, é o puto franzino da Liga KnocKOut, recordado por ter enfrentado – à data, como hoje – um 9Miller inundado por brancas e preenchido com punchlines nem sempre pertinentes ou munidas de sentido.

Para quem não conhece, faltarão apenas algumas linhas, poucos minutos e uma ou outra faixa para que a estupefação se faça sentir.

Francamente, incluo-me no segundo grupo; é que, mesmo sem nenhuma crítica evidente para elencar, sempre olhei os coletivos de hip-hop com algum cinismo. Serão formas de obstruir falhas e blindar virtudes, de agregar num grupo quem não se fez sozinho ou antes a sinergia genuína de diferentes indivíduos, que não se anulando, foram capazes de ser players efetivos num jogo de soma positiva?

De Deepak Looper salta-nos ao ouvido a versatilidade e destreza com que Papi alterna entre baladas emocionais e bangers regados a braggadocio, faixas para o coração e músicas desgarradas de rima crua e ritmo contagiosamente viril. Mas este é um álbum vincadamente masculino: sobre o filho, sobre o homem, sobre o amante, sobre o namorado e sobre o rapper destemido. Todos eles esmagados pela urgência.

Se assim não fosse, com que legitimidade poderia atacar a masculinidade tão diretamente? “100km, 200km, 300km: prego a fundo; vivo rápido, morro imediatamenteversa na faixa homóloga, onde entre proporcionar a estreia sexual de uma novata e testar a efetividade do karma, nasce, vive e morre. Tudo sem perder o fôlego. Um murro no estômago desferido a frio: não só pelo facto de já termos ouvido relato semelhante, como pela constatação silenciosa (e interna) de poder perfeitamente ter sido feito por nós.

Este disco – concebido como espelho – reflete-nos o principal receio do autor: a própria finitude, disfarçada de dilemas familiares insolúveis e polvilhada com alguns dos vícios mais habituais, nocivos e inerentes à natureza humana. E, numa obra recheada de pérolas, torna-se difícil destacar os temas mais reluzentes.

Em Impasse, repete a pergunta “se não for agora é quando?”; em “Imbecis / Íman exclama “se eu morrer isto é para sempre”  e em “I’m the Money – a faixa mais deslocada do eixo temático que domina o álbum – encerra a trilogia sobre o poder do dinheiro, que havia iniciado em “Money” (faixa de Profjam) e dado seguimento em “Pagar as Contas” (um original de Slow J, com a participação adicional de GSon).

Tecnicamente, é bom parafrasear o próprio para clarificar os limites musicais de Deepak Looper: “isto não é rap, trap ou boom bap”. Pois não: há riffs de guitarra orelhudos por todo o lado e isso (não só, mas também) torna impossível qualquer tentativa de catalogação. Propositada ou não, a pluralidade de estilos tem um obreiro: João Baptista Coelho (a.k.a. Slow J).

O músico (sim, bem mais que rapper) não é só o produtor executivo deste álbum. E, por isso, merece uma reflexão séria sobre o papel que vem assumindo no hiphop luso. Foi ele que nos habituou a listas Best Of precoces, com um álbum que em Fevereiro do ano passado já levava selo de melhor do ano. Também foi ele que não só fez o forcing necessário para que este álbum nos chegasse aos tímpanos, como fez o obséquio de nacionalizar GSon e, por arrasto, os Wet Bed GangNo espaço de pouco mais de um ano, Slow J não só lança um álbum definitivo para a música portuguesa, como nos apresenta um dos atuais MC’s mais consensuais (e respetivo coletivo); e ainda lança a carreira a solo de Papillon. Palavras para quê?

Se dúvidas restam de que estamos perante um projeto exclusivamente autobiográfico, há um detalhe que poderá ter passado despercebido, e que as elimina por completo: das 13 faixas que compõem o álbum, o título de dez delas inicia-se pelas letras IM (que do inglês literal se traduz “eu sou”). Minucioso demais para ser um pormenor desprovido de intenção.

Metamorfose, pt.2” é a estocada final numa estreia avassaladora de um intérprete que, antes de mais nada, é um rapper puro: barras avulsas, sentidos subliminares e alçapões cheios de semântica formam a última faixa do álbum. Porventura, é esta a música mais contestatária, óbvia e in your face de todo o projeto, não vá o ouvinte não estar a “ver a bigger picture”. De um homem que diz “ter as chaves tipo César Peixoto”, ninguém esperava menos que o arrombar de portas que acabamos de escutar.

Em resumo, desta belíssima peça musical até se extrai um sentido mais lato, referente ao próprio género musical como um todo: a forma como quem ouve se relaciona com ela, se revê nela, se lembra nela. Por muita falha, excesso ou desvirtuação que tenham lugar no hip-hop de hoje, não há passo em falso que oculte a sua principal característica: mostrar a todos e qualquer um que já alguém se sentiu precisamente da mesma forma. Que quem rima, mesmo que não seja um de nós, poderia perfeitamente ser.

Deepak Looper não só analisa tudo com um olhar profundamente sóbrio, como acaba a dissecar com mestria as temáticas que perturbam qualquer Homem digno do termo: amor, família, sentido de existência e inevitabilidade da nossa própria finitude.

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