Para além da sua ‘Laranja Mecânica’, o que fez Anthony Burgess?

por Lucas Brandão,    8 Junho, 2018
Para além da sua ‘Laranja Mecânica’, o que fez Anthony Burgess?
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Em pleno século XX, numa fase em que a literatura britânica oscilava entre utopias e distopias, Anthony Burgess foi um dos notáveis que exponenciou o seu potencial criativo nesse período. Naquilo que foi uma vida subida a pulso, vindo de origens humildes, foi construindo as suas raízes na banda desenhada, até alcançar o êxito de “A Clockwork Orange”, que conheceu particular notoriedade após a adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick. No entanto, de mais foi feita a carreira do britânico, que se tornou compositor de mais de duas centenas de músicas, para além de redigir vários argumentos e de ser crítico literário em várias publicações de renome. Se isso não chegasse, também se debruçou no estudo da obra de James Joyce, para além de traduzir obras tão várias, como a tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles, a peça “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand, e até a ópera “Carmen”, do compositor Georges Bizet. A sua virtude linguística acabaria por culminar no dialeto que criou para a sua “laranja mecânica”, de um estudo minucioso e criterioso dos idiomas do globo.

John Anthony Burgess Wilson nasceu em 25 de fevereiro de 1917, num subúrbio de Manchester, em Inglaterra, numa família católica de classe média-baixa. Apesar de, como autor, passar a ser conhecido como Anthony Burgess, a sua alcunha de miúdo era Jack, até ao lançamento de “Time for a Tiger”, em 1956. Um ano depois, somente aos 30 anos, a sua mãe faleceria numa epidemia de gripe, quatro dias após a filha, por razões similares. Sentido o seu pai ressentido pelo sucedido, passou a ser cuidado pela tia materna, mesmo com este a ajudar, trabalhando como guardador de livros e como pianista num pub. O seu progenitor viria a casar com a proprietária do estabelecimento, com quem o jovem passou a viver até 1938, quando morreu. Dois anos depois, a sua madrasta também viria a partir, naquilo que seria o culminar de uma infância muito solitária.

Após algumas turbulências na escola, passou a estudar no Xavierian College até 1937. Foi neste período que se apaixonou por música, após ouvir, na rádio, o “Prélude à l’après-midi d’un faune”, composto por Claude Debussy. Convencido de que se queria tornar num compositor, e sem ter disponibilidade financeira para se matricular numa escola vocacionada para isso, passou a aprender sozinho, mesmo após ingressar na Victoria University of Manchester, pelas suas notas fracas a Física. Por isso, licenciou-se em Língua e Literatura Inglesa, numa tese que abordou a obra “Doctor Faustus”, de Christopher Marlowe. Na universidade, viria a conhecer a sua futura esposa, Llewela (Lynne) Jones, com quem se casaria em 1942. Antes do matrimónio, cumpriria o seu serviço militar, no qual teve alguns problemas com companheiros de esquadrão. Não obstante, e mesmo sendo acusado de deserção, seria promovido a sargento, numa altura em que a sua esposa, grávida, seria violada por quatro desertores norte-americanos, que lhe fariam perder o filho que transportava no ventre.

Seria uma altura em que Burgess estava longe da sua companheira, assentando em Gibraltar. Dessa experiência, viria a obra “A Vision of Battlements”, datada de 1965, parodiando a Ilíada com a sátira ao heroísmo de guerra daqueles que faziam parte dos corpos do exército. Neste lugar, seria professor de discurso e drama, ao lado de Ann McGlinn, que lhe viria a nutrir a curiosidade pelo comunismo. No decurso deste período, o futuro autor seria parte da linha programática “The British Way and Purpose”, sendo instrutor do Conselho Central de Aconselhamento para a Educação das Forças, ao abrigo do Ministério da Educação, no período pós-guerra mundial. Com o seu conhecimento linguístico, seria importante no reconhecimento de expatriados holandeses e franceses que lá se encontravam, mas não deixou de ser polémico, acabando preso após insultar o general espanhol Francisco Franco.

Após deixar o exército, onde era, em 1946, sargento-major, passou a lecionar nos arrabaldes de Wolverhampton e de Preston, para além de colaborar na Birmingham University. No início dos anos 50, passou a ser professor secundário na escola de gramática de Banbury, onde se tornou responsável pelas atividades desportivas e pela sociedade de teatro. Aqui, adaptaria algumas obras notáveis, como “Sweeney Agonistes”, do poeta T.S. Eliot. Burgess viria a instalar-se num chalé nas redondezas, enquanto também colaborava no jornal local, o “Banbury Guardian”. Porém, esta permanência seria Sol de pouca dura, pois juntou-se ao serviço colonial britânico como professor na Malásia, no ano de 1954, onde também se responsabilizaria por uma residência de estudantes da escola preparatória. Aqui, escreveria a composição musical “Sinfoni Melayu”, a primeira de várias no seu repertório, que se tornou bem-sucedida por via da sua crescente fluência a escrever e a falar malaio, para além de representar os aspetos musicais e culturais do futuro país.

Neste período, viria a redigir as suas primeiras obras, nomeadamente a “The Malayan Trilogy”, que aborda o processo de descolonização da Malásia de uma forma descontraída e cómica, na qual tenta tornar-se num perito de ficção do país. A trilogia, composta por “Time for a Tiger”, “The Enemy in the Blanket” e “Beds in the East”, acompanha Victor Crabbe, professor na escola de Mansor, que se depara com um aluno que organiza sessões clandestinas de doutrinação comunista, para além das suas contingências pessoais e demais profissionais. Esta escrita acompanha a influência de autores britânicos no Oriente, como Rudyard Kipling (fluente em hindu), Joseph Conrad (com obras sobre o sudeste asiático) e George Orwell (conhecedor do urdu e do birmanês.

A sua formação linguística permitiu-lhe efetuar traduções de obras notáveis, como “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Ronstand, e a ópera “Carmen”, de Georges Bizet. A sua perceção da linguística como ciência fez-se apresentar em “Language Made Plain” (1964) e “A Mouthful of Air” (1992), onde apresenta o desenvolvimento da língua inglesa, da sua relação com os demais idiomas, da formação dos dialetos e da aprendizagem de idiomas estrangeiros. A sua carreira começou, precisamente, na crítica literária, nos estudos da obra de James Joyce, de D.H. Lawrence, de Ernest Hemingway e de William Shakespeare, dos quais resultaram algumas obras, como “Ninety-nine Novels: “The Best in English since 1939”.

Após sair da Malásia, Burgess continuar na Ásia, desta feita no Brunei, onde também lecionou, mais especificamente na Universidade Sultão Omar Ali Saifuddin. Naquele que seria um protetorado inglês até 1984, o professor viria a escrever “Devil of a State”, lançado em 1961, abordando um insurgente da opressão colonial no decurso da construção de uma mesquita, no califado africano imaginário de Dunia. Esta adaptação da nomenclatura do lugar foi feita por recear que fosse acusado de calúnia por parte daqueles que habitava no Brunei, com essa explicação a ser dada na sua autobiografia “Little Wilson and Big God” (1987); esta que foi escrita de forma picaresca e aventureira, uma das referências biográficas do século XX.

Durante uma das aulas, desmaiou enquanto lecionava história, sendo-lhe detetado um tumor inoperável no cérebro, sendo-lhe informado que estava limitado a um ano de vida. De forma a criar um pé-de-meia para a sua esposa, decidiu escrever várias obras literárias, numa fase em que se encontrava desprotegido pelo estado, tendo em conta o seu apoio declarado ao partido da oposição de então, e ao seu líder A.M. Azahari. No entanto, e perante os efeitos do clima do sudeste asiático, o desalento na docência e no rescaldo de um período de alcoolatria, Burgess deixou que se declarassem invalidez e voltou para o seu país em 1959. Mal pisou solo britânico, foi internado num hospital londrino, na sua ala psiquiátrica, na qual realizou exames que não detetaram qualquer anomalia nem tumor. Este período seria narrado na obra “The Doctor is Sick”, que é uma ficção na qual um professor de linguística faz uma bateria de exames à procura de detetar o problema que lhe fora diagnosticado, enredando numa maré de fantasia enquanto está sob o efeito da anestesia, com o recurso a várias variantes do inglês.

Com a soma monetária que a sua esposa herdara do pai, para além das poupanças que tinham, Burgess sentiu-se disponível para embarcar numa carreira exclusivamente dedicada à escrita, com a qual tinha uma relação direta, em que dispensava a redação de rascunhos. Residindo numa casa térrea nas redondezas de Londres, o autor também participou em vários programas da BBC, nos estúdios da White City, numa fase em que conheceu e estabeleceu uma amizade profunda com o também autor William S. Burroughs. Foi neste período, no programa “Desert Island Discs”, que apresentou Johann Sebastian Bach, Henry Purcell, Claude Debussy e Richard Wagner como os seus compositores prediletos, que levaria consigo para uma ilha deserta. No entanto, o casal viria a viajar de barco pelo Báltico, já nos anos 60, chegando até Leninegrado. Da travessia, nasceu “Honey for the Bears”, livro que narra as peripécias de um negociador de antiguidades na União Soviética, sendo perseguido pelas suas autoridades, mas entregando-se a uma vida de alguns excessos e de transgressões. Outras obras deste período foram “The Right to an Answer” (1961, onde aborda a morte), “The Worm and the Ring” (1961, uma versão de “Ring Cycle”, do compositor Richard Wagner) e “One Hand Clapping” (também de 1961, satirizando o vazio da cultura popular).

Numa fase em que, como linguista, foi aprendendo russo, inspirou-se neste e no cockney, vernáculo da classe operária inglesa, para criar o vocabulário nadsat, que seria o fio condutor e comunicativo da célebre obra “A Clockwork Orange” (1962). Esta distopia navega na violência juvenil e em traços de repressão e de opressão a partir da figura de Alex, que narra as suas experiências, as travessuras e as perpetrações, ao lado do seu grupo, os droogs, para além das consequências que resultariam desses comportamentos. A cena de violação é inspirada na que aconteceria com a esposa do autor, Lynne, perpetrada por um grupo de desertores do exército norte-americano. Entre as referências a Ludwig van Beethoven (em especial, à sua sinfonia nº9) e a utilização de métodos de tortura e de indução à aversão com a própria música clássica, as drogas, o sexo e a “ultraviolence” são os referentes que conduzem a uma distopia única e marcante na literatura europeia do século XX. Seria marcante ao ponto de conquistar o espírito inquieto de Kubrick, que o trouxe ao grande ecrã em 1971, com o protagonismo de Malcolm McDowell. O capítulo final seria suprimido da edição norte-americana do livro, o vigésimo-primeiro, que simboliza a maturidade e a responsabilidade humana, assim como não constaria na adaptação cinematográfica de Kubrick.

Entretanto, o inglês redigiu “Inside Mr. Enderby”, o primeiro de uma série de quatro livros sobre um poeta que sofria de dispepsia, de seu nome Francis Xavier Enderby, que atravessa pelas tormentas e conturbações habituais na vida de um lírico. Numa altura em que a sua esposa desenvolveu um vício no consumo de álcool, Burgess, que não a quis deixar por respeito ao seu primo George Dwyer, então bispo de Leeds, conheceu a tradutora italiana Liliana Macellari. Corria o ano de 1964, um ano depois de se conhecerem, e o autor tinha o seu primeiro filho, de seu nome Paolo Andrea. Lynne Burgess viria a morrer de cirrose no ano de 1968, que permitiu ao escritor casar-se com a agora denominada Liana Burgess. Obras que iriam emergir neste período seriam “Nothing Like the Sun” (1964, onde apresenta a vida amorosa conturbada de William Shakespeare, na perspetiva do próprio), “M/F” (1971, em que se presencia a um caso de incesto, articulado com o próprio mito de Édipo) e “Beard’s Roman Women” (1976, abordando, por via da ficção, a viuvez de Burgess em Roma).

Politicamente, o autor era conservador, embora lisonjeasse o ideal de monarquia imperial imbuída do jacobinismo anarquista. Avesso ao socialismo e aos seus preceitos tributários, que, então, influenciavam o decurso político do Reino Unido, decidiu sair do país, viajando pela Europa naquilo que consistiu no seu exílio fiscal. Enquanto a sua esposa conduzia a carrinha que levava o trio, onde se inclui o filho do casal, pela Europa Central, Burgess redigiu obras e guiões de filmes para nomes, como Franco Zeffirelli (“Jesus of Nazareth”, de 1977) e Stuart Cooper (“A.D.”, datado de 1985), para além de criar o idioma pré-histórico ulam, para o filme “Quest for Fire” (1981, realizado por Jean-Jacques Annaud). Entre enredos que geraram repercussão positiva e outros que nunca chegaram a ser publicados, destacam-se “Tremor of Intent” (1966, uma paródia de James Bond), a série “Sherlock Holmes and Doctor Watson (1980). Instalados, em primeiro lugar, em Malta, um discurso que caiu mal no goto dos seus bispos católicos levou a família do britânico a saltar para Roma, onde corria um rumor de que havia um plano da máfia para raptar o seu filho. Aí, e aproveitando as isenções fiscais monegascas, passaram a viver no Mónaco, para além de ter uma villa na zona da Provença, no sul de França.

Daqui, passaria a viver nos Estados Unidos, lecionando na Princeton University e na City College of New York, para além da Columbia University, responsável pela unidade curricular de escrita criativa. Estes quatro anos seriam fugazes, que o reencaminharam para o Mónaco, no ano de 1976, no qual ajudou a fundar a Princess Grace Irish Library, um centro de estudos culturais irlandeses. A sua carreira musical conheceu especial fôlego neste período, em que compôs “Napoleon Symphony: A Novel in Four Movements” (1974, inspirada na estrutura de “Sinfonia Eroica”, de Beethoven, na qual redige sobre Napoleão como uma personagem cómica, e que dedica a Stanley Kubrick) e “Mozart and the Wolf Gang” (1991, subordinada à vida do compositor e à criação da sinfonia nº 40). Para além destes, e de traduzir “Carmen”, de Georges Bizet, compôs “Blooms of Dublin” (1982, inspirado na obra de James Joyce “Ulisses”), e redigiu para o musical de Broadway “Cyrano” (1973, musicado por Michael J. Lewis) e o libreto da interpretação de “Oberon”, composta por Carl Maria von Weber, por parte da Scottish Opera.

A sua escrita literária permaneceria consistente, com a abordagem mais frequente a temas religiosos nos anos 80, para além da célebre saga “Any Old Iron” (1989), que adapta a lenda da espada do Rei Artur, Excalibur, às incidências da primeira metade do século XX. Isto é feito através do cruzamento de duas famílias, uma russa-galesa e outra judaica, que acompanham o percurso até à redescoberta da espada pelas circunstâncias sociopolíticas das cinco décadas. Quanto às obras de cariz metafísico, são lançados “Earthly Powers” (1980, subordinado a um autor responsável pela redação das memórias de um papa e o percurso apocalíptico que o levou, nos seus oitenta anos de vida, a essa etapa) e “The Kingdom of the Wicked” (1985, que acompanha “The Man of Nazareth” (1979) na redação crítica da evolução do cristianismo até à destruição de Pompeia). A última seria já póstuma, sendo “Byrne” (1995) escrita em verso e sobre os golpes de sorte de um irlandês na guerra naval anglo-espanhola do século XVI.

Nutrindo um especial carinho pela zona mediterrânica, era nesta em que se desejava morrer, embora acabasse por padecer de cancro no pulmão, e partir em Londres, internado no Hospital of St. John & St. Elizabeth, no dia 22 de novembro de 1993. As suas cinzas, no entanto, seriam depositadas no cemitério do Mónaco. Como epitáfio, tinha a polissémica frase “abba, abba”. Polissémica por significar, nas línguas semíticas, “pai, pai”; por representar o esquema rimático dos sonetos de Petrarca; e por intitular a sua vigésima-segunda obra, em que abordava os últimos meses de vida do poeta John Keats.

Anthony Burgess criou-se e recriou-se nas suas investigações literárias e linguísticas, dando luz a um amplo repertório literário e musical. A composição não se limitou, assim, à articulação das palavras, mas também à das notas, dos sons e das sílabas, que se tornaram transversais na sua carreira. Como docente, apontou o rumo para uma escrita criativa que se orientasse à imagem da dispersa e controversa laranja mecânica que o levou a revelar o bom, o mau e a própria distorção deste binómio, na sua vida e na sua obra. As inspirações foram muitas, os saberes outros tantos, mas o legado singulariza-se numa experiência que, com altos e baixos, com rasgos e reparos, se soube exceder em existência.

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