“Para lá do Muro”, de Katja Hoyer: a memória da RDA no contexto actual alemão
Que espaço a divisão entre a República Federal Alemã (RFA) ocidental e a República Democrática Alemã (RDA) oriental ocupa na memória colectiva alemã? Quais as sequelas que permaneceram e como é que os alemães que viveram na outrora RDA olham para esse período e o quão bem integrados foram depois? Por outra perspectiva, como é que os alemães que viveram na RFA olham para a memória do que foi a RDA? O muro de Berlim ergueu-se e dividiu a cidade em 1961, enquanto que a divisão entre o ocidente e o oriente alemão durou 41 anos. Katja Hoyer, historiadora e jornalista germano-britânica e investigadora do Royal Historical Society, também proveniente da RDA, da cidade de Guben, relembra e bem no seu livro, “Para lá do muro: Uma história da Alemanha de Leste”, que “o Estado alemão oriental durou mais de quarenta anos, mais do que a Primeira Guerra Mundial, a República de Weimar e a Alemanha Nazi todas juntas”.
A geração que viveu e cresceu na outrora RDA, tal como a geração de Angela Merkel, ainda se lembra e tem memórias bem vivas. É parte integrante da sua história. A própria jornalista e investigadora Katja Hoyer, nascida em 1985, com apenas 40 anos actualmente, ainda teve como berço a Alemanha de Leste quatro anos antes da queda do Muro de Berlim, em 1989, e cinco anos antes da reunificação alemã em 1990. Mas Katja também ressalva: “Os Alemães ocidentais tinham-se habituado à ideia de 1945 ser a sua «hora zero», o ponto a partir do qual os tenros rebentos da democracia despontavam das cinzas da Segunda Guerra Mundial. Quaisquer que fossem os problemas que a República Federal pudesse ter, a prosperidade e a estabilidade que produzira eram como um cobertor macio para uma população que, desde 1914, pouco mais conhecera do que o tumulto. Aquela era uma Alemanha de que estavam orgulhosos. A Alemanha Ocidental foi considerada o Estado de continuação e a Alemanha oriental a anomalia.” Não obstante, “os altos e baixos da RDA, enquanto experiência política, social e económica, deixaram uma marca nos seus antigos cidadãos, que conservam essa experiência consigo – e não como um mero «lastro». Milhões de alemães hoje vivos não podem, nem querem negar que viveram outrora na RDA. Embora o mundo que os moldou tenha caído com o Muro de Berlim em 1989, as suas vidas, experiências e memórias não foram arrasadas como ele. No entanto, aos olhos de grande parte do Ocidente, a RDA perdeu verdadeiramente a Guerra Fria em solo alemão, invalidando moralmente tudo o que lá existisse.” Por isso mesmo, segundo Katja, é necessário, passado este tempo, relembrar o que foi a RDA, com toda a sua história, altos e baixos e, acima de tudo, a forma como evoluiu ao longo dos seus 41 anos de existência. Não se trata de uma história estática, mas uma história de oscilações.

Angela Merkel também conta como foi a sua vida na RDA como filha de um pastor, no livro autobiográfico “Liberdade”. Afinal, a outrora chanceler que guiou a Alemanha no período em que a União Europeia atravessou o seu momento de maior crise desde a sua fundação proveio, também, da RDA e torna-se interessante estabelecer o paralelismo entre o descrito na primeira parte da sua auto-biografia e o livro de Katja. Trinta e cinco anos vividos na RDA e os últimos trinta e cinco anos vividos na Alemanha unificada, assim se pode dividir a vida de Angela Merkel, tal como se fossem duas vidas, mas no próprio prólogo que escreveu em “Liberdade”, a própria afirma que não são duas vidas, mas uma, porque a segunda parte não pode ser compreendida sem a primeira. Como a própria afirmou: “Como foi possível que uma mulher, depois de ter vivido os primeiros trinta e cinco anos da sua vida na República Democrática Alemã, tenha assumido e ocupado, ao longo de dezasseis anos, o cargo político com mais poder que alguém poderá exercer na República Federal da Alemanha? Um cargo que deixou por vontade própria, não por não ter sido reeleita ou forçada a fazê-lo. Como foi a experiência de crescer na RDA, filha de um pastor evangélico, e de viver, estudar e trabalhar sob ditadura? Como foi assistir ao colapso de um estado? E, de repente, experimentar a liberdade? É essa a história que quero contar.”
O livro de Katja começa, justamente, por referir o exemplo de Merkel e como aquela “que não nasceu chanceler” se sentia frustrada, por vezes, pelos seus primeiros 35 anos ainda numa ditadura parecerem ser descartada ou tidos como um lastro: “Embora Merkel se conformasse a manter uma apertada reserva acerca do seu passado na Alemanha de Leste, este continuava a ser uma parte dela de que não podia abdicar. Em outubro de 2021, com a sua aposentação política à vista, aproveitou a oportunidade do seu último Dia da Unidade Alemã no cargo para se opor à forma como as histórias de vida na Alemanha de Leste, como a sua, tinham sido tratadas como esqueletos no armário da nação. Uma publicação da Konrad-Adenauer-Stiftung, uma fundação próxima do próprio partido político de Merkel, elogiara a sua adaptabilidade política à luz daquilo a que chamavam o «lastro da sua biografia alemã oriental». Esta infeliz frase incomodou claramente a chanceler. «Lastro?», indignou-se com aquela descrição do início da sua sua vida.” E continua: “Naquele invulgar momento público pessoal, realçou, não estava a falar como chanceler, mas como «uma cidadã do Leste, como uma dos mais de 16 milhões de pessoas que viveram a sua vida na RDA e que sentiram repetidamente juízos como aquele […], como se a vida antes da reunificação alemã não contasse […], independentemente das boas ou más experiências que tenham tido»”.

A experiência da primeira mulher chanceler e proveniente da RDA é rematada desta forma: “Após dezasseis anos no mais alto cargo político do território, esta alemã ainda tinha de provar a sua lealdade, renegando o que acontecera antes”. E que retrato fez Angela Merkel da RDA no livro “Liberdade”? Um retrato também pessoal entre as boas memórias da infância e juventude, e a consciência de ser filha de um pastor e o que representava, todos os anos, no início da escola, ter de dizer aos novos professores a profissão do pai. Recorda, também, como foi habituada a pesar e a medir cada palavra e a esquivar-se de perguntas, assim como facto da mãe, professora, não poder leccionar numa escola pública porque “na RDA, nada do que dissesse respeito à educação podia sofrer qualquer tipo de influência religiosa. A RDA entendia-se como um Estado ateu.” Jamais poderia reproduzir em público as conversas de casa e, como a sua mãe não era considerada profissional, Merkel e seus irmãos não puderam, por exemplo, frequentar o infantário e não tiveram direito às refeições escolares. Por outro lado, também explicou que, “na RDA, os pastores ganhavam pouco, mas, em contrapartida, como era o nosso caso, pagavam uma renda reduzida pela casa onde viviam. Além disso, recebiam apoio material do ocidente, a chamada «ajuda fraterna». Para a nossa família, isso correspondia a cerca de 70 marcos ocidentais por mês. A minha avó de Hamburgo e — após a sua morte em 1078 — a minha tia, irmã da minha mãe — geriam a ajuda fraterna e enviavam-nos regularmente encomendas. Para quem estava em Hamburgo, isso exigia uma organização tremenda, mas, para nós, constituía uma ajuda inestimável.”
Esta foi apenas umas das descrições de Merkel sobre a vida na RDA, contando com o facto de que acabou por escolher uma carreia em ciências exactas como a Física porque dá menos espaço para a subjectividade e por isso, num país em ditadura, o seu ensino seria sempre melhor. Mas embora seja curioso que o livro de Katja Hoyer comece por fazer uma referência à forma como a ascensão inesperada de alguém provindo da RDA foi encarado, a autora vai muito mais além na sua análise da RDA. Para isso, a jornalista e investigadora recorreu a uma série de entrevistas incluindo Egon Krenz, último líder da RDA, até a trabalhadores comuns, mas sem ter passado por Angela Merkel.
O contexto histórico da divisão alemã é dada desde o início, ainda antes e quando Hitler chega ao poder, uma vez que, como se recorda, a Alemanha tinha sempre vivido sob constante tumulto desde 1914. Como Katja explica, a industrialização e urbanização fez com que o comunismo e socialismo ganhasse uma massa crescente de seguidores alemães, tendo as raízes destes movimentos começado a crescer nos meados do séc.XIX. Embora estes movimentos tivessem sido sempre alvo de violência por parte dos governos da Alemanha, a repressão cresceu exponencialmente com Hitler e a sua subida ao poder. Muitos socialistas e comunistas alemães procuram refúgio na Rússia, como o caso de Erwin Jöris, cujo caso é contado no livro. Mas Estaline, em 1937, temendo uma invasão nazi — era só uma questão de “quando” e não “se” – inicia uma forte perseguição aos alemães socialistas em solo russo. Como descrito em “Para lá do Muro”: “As purgas de Estaline tiveram um alcance tão vasto que apenas um quarto dos exilados alemães na Rússia lhes sobreviveu. Dos nove membros alemães do politburo do KPD [Partido Comunista Alemão] que se tinham exilado na União Soviética, apenas dois estavam ainda vivos no final da guerra: Wilhelm Pieck Pieck e Walter Ulbricht”.
Ora já em 1944, quando o “politburo do KPD recebeu ordens para começar a planear uma ordem pós-guerra na Alemanha, estas recaíram sobre os homens que se tinham mostrado leais a Estaline acima de tudo: Walter Ulbricht e Wilhelm Pieck.” Pieck foi, nem mais, o primeiro e único presidente da RDA e Walter Ulbricht o Presidente do Conselho de Estado Alemão a partir de 1960, quando Wilhelm Pieck morreu, e secretário Secretário-geral do Comitê Central do Partido Socialista Unificado da Alemanha. São estas as bases da RDA. Há a questão que se coloca. Seria da vontade de Estaline fazer uma RDA que seguisse, por completo, as directrizes comunistas da URSS, ou foi, antes, resultado da fidelidade cega dos comunistas alemães que Estaline deixou sobreviver?
No livro de Katja Hoyer podemos ler: “Quando muito, Estaline parece ter estado interessado em refrear o zelo ideológico dos comunistas alemães. Os historiadores continuam a discutir quais seriam os seus exatos planos para a Alemanha do pós-guerra. O que é claro é que as suas instruções iniciais para Ulbricht seriam aplicáveis a uma solução para toda a Alemanha e não apenas para as áreas que ele ocupava. Isso não significava o estabelecimento de um sistema à imagem soviética.” A mensagem que, inicialmente, Estaline fazia passar é que tinha de parecer, acima de tudo, anti-fascista, talvez pelo desejo de ainda colaborar com os aliados ocidentais. Mas pelo que Katja Hoyer explica, um estado alemão oriental não fazia parte dos planos originais.
“Tem de parecer democrático sem o ser”, foi esta a ideia que Ulbricht passou aos seus companheiros e foi este o ideal que guiou a RDA, num bolo que não foi partido de forma igual. Em 1949, a RDA contava com 18,4 milhões de habitantes, enquanto que a RFA contava com 50,4 milhões. A ocidente existia um rácio 50/50 entre católicos e protestantes, ao passo que na RDA o rácio era de 15 por cento de católicos para mais de 80 por cento de protestantes. Quanto aos refugiados de leste, estes constituíam um quarto da população, ao passo que na RFA constituíam 16,5 por cento das pessoas. A lista da jornalista continua: “Os aliados ocidentais forneceram ajuda económica enquanto os soviéticos cobraram reparações; o leste era largamente agrícola, ao passo que o Ocidente cobria os centros industriais; a RFA teve de criar uma nova capital em Bona, enquanto a RDA podia conservar Berlim (…)”
Existem dados interessantes como, também, o facto de que na RDA “um pouco mais de metade de todas as mulheres trabalham em 1955, e esta percentagem subiria para dois terços em 1970, na RFA apenas um terço das mulheres estavam empregadas em 1950 e apenas 27,5 por cento trabalhavam em 1970.” Com problemas económicos, a situação piorou com o quase embargo, só não o era no nome, que a RFA impôs, uma vez que se opunha a qualquer país que reconhecesse a RDA oficialmente, situação que provocou escassez de bens. Havia também a questão da grande dependência energética da RDA face à URSS que como a autora explica não era de confiança: “Foi realizado um esforço gigantesco para tornar a RDA autossuficiente, em grande medida com base em lenhite. Esta continuaria a fornecer 70 por cento de toda a energia, o que implicou que, em 1970, a RDA acabasse por ser a maior produtora de lenhite do mundo, ultrapassando a União Soviética e a Alemanha ocidental juntas. Havia muito pouco mais, e as matérias primas como o carvão preto, o cobre e o ferro também eram pouco abundantes.”
Entre a tragédia do Muro de Berlim que separou famílias, os problemas a nível de economia, o controlo de pensamento que foi afastando cada vez mais intelectuais, o funcionamento da Stasi (a polícia secreta alemã) e a crescente decadência da URSS, Katja Hoyer também explica que “A Stasi vigiou e, muitas vezes, interferiu nas vidas das pessoas em todas as fases da história da RDA, contudo, não tornou as pessoas da Alemanha de Leste passivas. De modo semelhante, o próprio Estado, embora dependente da boa vontade de Moscovo, nunca foi um passivo satélite soviético. Os alemães orientais viveram e moldaram uma experiência especificamente alemã que moldou que abrangeu grande parte da segunda parte do século XX. As suas idiossincrasias políticas, económicas, sociais e culturais merecem uma história que as trate como mais do que uma «Stasilandia» murada e que lhes confira o seu lugar próprio na história alemã”, escreve.
Este não é um retrato a preto e branco, entre imagens simplistas forjadas pelo contexto da cortina de ferro. É profundo, extenso, e enquadra a RDA com tudo o que foi. Já que os inquéritos desde 1990 mostram uma maioria que se sente vista como “cidadãos de segunda classe”, esta é uma importante reflexão tendo em conta o mundo actual em que discutimos de novo todos estes conceitos e ideologias que nos remontam ao início do séc. XX.

