‘Pára-me de repente o pensamento’, dizemos todos nós

por Lucas Brandão,    9 Dezembro, 2017
‘Pára-me de repente o pensamento’, dizemos todos nós
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“Pára-me de repente o pensamento”. O primeiro verso de um poema de Ângelo de Lima, que, na extrapolação do seu ser e do seu sentir, se viu encaminhado para o Centro Hospitalar Conde de Ferreira, onde acolhem aqueles que padecem de patologias de ordem psicológica. Também pintor, e nascido no Porto, onde se localiza essa instituição, fez parte da Geração de Orpheu, até se ver obstado por alucinações e demais sintomas que o puseram nas proximidades de uma esquizofrenia paranóide. As comumente conhecidas “paranóias” permanecem rotuladas e afamadas nos dias de hoje, nomeadamente com uma conotação negativa associada à mesmas, uma carga densa e que pouco ajuda aqueles que, por força de circunstâncias que, muitas das vezes, não conseguiram controlar, se viram dominados e domados por esse tipo de fatalidades.

O realizador Jorge Pelicano e o ator Miguel Borges imiscuiram-se neste Centro Hospitalar, adaptando a figura de Ângelo de Lima para melhor investigar e documentar a realidade destes lugares, que se marginalizam do mundo dito real, daquele que é vivido diariamente, no quotidiano, por todos aqueles que não estão num regime de internato. Por muito que se possa confrontar e diferenciar, não são assim tantas as disparidades entre aqueles que vivem “normalmente” (um advérbio que não visa causar melindre, nem aflorar a diferenciação assinalada) e os que estão neste Centro. É neste Centro que permanecem aqueles que não se deixam sucumbir no alto da sua pureza, e que aceitam os tratamentos propostos. Para além disso, são fonte de uma sabedoria inestimável, por mais flagelada que esta se encontre.

É uma sabedoria imensamente considerável, é uma sabedoria que não se talha nos conhecimentos da instrução. São experiências vividas, sensações proferidas no discurso da vivência. As conversas que os membros da comunidade retratada no documentário, da comunidade do Centro, são de uma profundeza inacreditável, que se dá quase como perdida, como erradicada da velocidade dos dias de hoje. Os falares de conveniência tornaram-se na medicação preventiva para a falta destas minúcias, de perceber o outro, de compreender o outro, de estimar o outro, de se preocupar com o outro, de, tal e qual como este é, amar o outro. Aqueles que visitam os participantes desta comunidade sistémica sentem essa aura, para além dos funcionários que preparam todas as condições para que se sintam cómodos e capacitados para superar as adversidades impostas pela sua vida, pelos seus contextos e pretextos. As oportunidades não se multiplicam mas vão surgindo.

Porém, a vontade de estar do outro lado das delimitações daquele espaço são, em tudo, naturais. A liberdade está deste lado, aquela independência em todos os níveis, mas, essencialmente, no campo pessoal, onde os diagnósticos viabilizam uma vida em fraternidade para com a liberdade que é inerente à ausência de barreiras, impostas dentro e fora de nós. Porque também aqueles que nunca foram diagnosticados com situações como aqueles que participam naquela comunidade sabem o que é sentir a restrição interior, o mau-estar para consigo e para com o mundo no qual habitam. Também estes, também eles, todos nós já desejamos que o pensamento parasse. De repente, tal como dizia o poeta.

É nas atividades grupais, é nesse conhecimento amplo e vário que vão adquirindo, que vão discutindo, que vão dialogando e relacionando com aqueles que vêm de fora, com o intuito de visitar e de confortar, de estar do lado deles, dos elos hercúleos dos dias alucinantes, em que a mente não dá tréguas a ninguém. Não é só, obviamente, àquele que se vê no cenário expresso no documentário. É neste sentido que, por mais que o espaço nos separe, há algo mais que nos une. O sentido de humanidade, o sentido de uma experiência heterogénea, mas que se cruza na essência de quem somos, nas transformações que o vivido enceta, e nos leva a ter. A imprevisibilidade previsível do nosso passado, que se torna pouco preparada para a tangibilidade presente e a realidade futura.

Comunicar é a chave. Partilhar é distintivo e demonstrativo da importância de, mais do que nos evadirmos e nos prendermos a um só mundo, desdobrar para o que de demais existe, que é uma realidade que deve congregar mais do que separa. Todos nós sofremos de problemas que outros já experienciaram, e terão, com certeza, testemunhos valiosos e palavras de roteiro a que uma luz nunca cesse de intervalar a caminhada menos fácil e mais sinuosa. Discriminar não pode nem deve ser um segmento pelo qual se segue, assim como o isolamento de um em relação ao outro. Entender, perceber, compreender, saber ouvir e intervir. O elementar de uma relação humana, entre dois ou mais agentes, para que o um se sinta validado e valioso, no uno que se propõe a chegar e a hospedar.

A pureza de caráter escasseia, mas não quando o inteligível das profundezas do poço são atingidas. Não há nada que se possa perder. A coragem denota-se naqueles que se viram com tudo até ao nada, ou mesmo de outros que nunca se escaparam do espectro do vazio oco, escuro. A pureza de caráter permanece incandescente naqueles que não se prendem aos julgamentos, às impressões depreciativas, às críticas, aos preceitos que fecham, ao invés de abrir. A vida podia e devia de ser um constante abrir de portas, onde as surpresas se tornavam proporcionais às revelações, sempre associadas a um fio de verdade, rumo a uma qualidade de felicidade, ciente da genuinidade.

Talvez se sugira, aqui, a utopia. Muito provavelmente, pois abunda o mal, a dificuldade, a iniquidade, a crueldade, a dureza, a frieza, a revolta. Tudo isto articula-se numa névoa demasiado pesada para que se possa aceitar, de ânimo leve, uma megalomania da felicidade. No entanto, o caminho faz-se percorrendo, no reconhecimento do pior para a anunciação do melhor de cada um de nós: aquilo que diferencia, aquilo que faz do indivíduo ser-se. A pureza, por mais fustigada pelo lastro da doença, da patologia, da enfermidade, não se rompe destes heróis alheados do palco do quotidiano. É no pensamento que encontram, e encontraram, desde sempre, o seu principal obstáculo, o obstáculo a que os seus sonhos e ambições se vissem cumpridos e florescidos. Por isso, pedem que pare, de repente, à imagem do dito por Ângelo de Lima. Damos por nós, numa só voz, com esse pedido. Para que sejamos nós mais nós, mais singular e plural, mais vida e mundo, mais compreensão e comunhão.

Podem visualizar o documentário neste artigo.

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