“Paradise Killer”: um crime no paraíso

por João Diogo Nunes,    28 Setembro, 2020
“Paradise Killer”: um crime no paraíso
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A investigadora Lady Love Dies é um dos habitantes das sequências de ilhas do paraíso, um mundo paralelo criado pelos humanos que no passado receberam poderes divinos. Depois de um evento menos feliz, a detetive é condenada ao exílio eterno, mas um crime hediondo obriga a justiça a retirá-la do confinamento ao 3 004 769.º dia pois há uma investigação a fazer.

As personagens têm modelos bidimensionais num mundo aberto de três dimensões

Esta aventura em primeira pessoa passa-se na Sequência de Ilha Número 24, a vigésima quarta tentativa de criar o paraíso. Neste mundo, onde se confundem demónios e deuses alienígenas, os humanos responsáveis pela criação das sequências de ilhas estão altamente organizados a nível administrativo e devemos desvendar os jogos de poder e os segredos que escondem para encontrar o culpado do crime. O mundo de jogo é apaixonante devido ao seu enredo tão alternativo, muito bem construído e suportado, escrito num tom surrealista hipnotizante. Nele discute-se a justiça, o poder, o culto divino, a arte, o escapismo, a busca pela perfeição e muito mais nas entrelinhas da resolução do crime. A narrativa roça a perfeição técnica e não há grandes defeitos a dissecar. A maior fraqueza é mesmo a pontuação do texto, que devia ter sido revista.

O jogo da Kaizen Game Works é uma amálgama de inspirações incrível, há um sentimento a Daganronpa e Zanki Zero fundido com laivos de Suda51. A jogabilidade faz circular dois elementos base: os diálogos e a exploração. A exploração permite encontrar pistas para a investigação, o que desbloqueia novos diálogos, estes, por sua vez, dão-nos motivos para investigar certas zonas e descobrir mais pistas que abrem mais diálogos. À medida que avançamos, encontramos uma enorme variedade de colecionáveis que vai estabelecer o chão da narrativa, dar-nos algumas missões secundárias e ainda enriquecer-nos com a moeda do jogo, os cristais de sangue. Recreativamente, os cristais compram skins para o nosso portátil de serviço e bebidas colecionáveis; utilitariamente, desbloqueiam habilidades da personagem, segredos sobre os suspeitos e ainda os pontos de viagem rápida e as respetivas viagens. Esta última decisão, que parece ser contraproducente de início, serve para promover a exploração do cenário, algo essencial para o desvendar de pistas, pelo que quanto mais exploramos e adquirimos cristais, mais poderemos usar a viagem rápida para nos deslocarmos até aos suspeitos mais eficazmente na reta final do jogo.

A descrição de certos itens faz lembrar uma espécie de santuário de Fátima distópico

Paradise Killer exige ser degustado como um todo, é preciso saber balancear a exploração e o desvendar de pistas com a deslocação entre personagens no mapa para o diálogo, caso contrário não teremos cristais para gastar nem opções de diálogo suficientes para justificar as viagens, ameaçando deslocações infrutíferas umas atrás das outras. Não é um problema, mas significa que o jogo não é para todo o tipo de jogadores e poderá entregar uma experiência menos agradável a quem não conseguir acertar com o ritmo mais otimizado de progresso, um efeito da grande liberdade existente. Quando achamos que já temos todas as pistas, ou as suficientes, procedemos para o julgamento, onde teremos de provar cada acusação que fizermos. Como final, o julgamento funciona bem, contudo, não vai muito além de escolher que suspeito acusar e depois selecionar, sem grandes consequências, as provas que temos uma atrás da outra — não há algo que dificulte esse processo, pois é o que fizemos antes que vai ditar o nosso sucesso. Outra questão é a das escolhas de falas nos diálogos, que influenciam pouco o jogo; seria proveitoso ter um sistema que tornasse cada escolha mais importante. Se a exploração correr bem e obtermos tudo aquilo de que precisamos, o jogo é fácil e não há um elemento de dificuldade que nos permita ser enganados pelas pistas ou penalizados por más decisões nos diálogos.

É no departamento gráfico que existem mais problemas. Ainda que a arte seja altamente estilosa e o visual vaporwave se enquadre muito bem no espírito, o jogo é algo datado na parte 3D, acusando falhas técnicas notáveis: os pop-ups são frequentes, as texturas variam bastante em qualidade, a aplicação da colisão é incoerente, o trabalho de modelagem sensaborão e o LOD muito duvidoso. Tendo em conta o baixo orçamento e o estilo do jogo, estas desvantagens técnicas não interferem assim tanto na experiência, mas não deixam de existir nem de evitar o possível deslumbramento visual com a ilha. De resto, o céu colorido e movimentado, a arte das personagens, os cartazes no cenário e até mesmo o uso de fotografias reais no jogo não desiludem. Os reflexos e alguns efeitos de materiais são interessantes e a luz está bem gerida, especialmente de noite.

Os menus são espalhafatosos e incríveis, transportam-nos para o ambiente do jogo e oferecem um leque variado de opções e de informação, isto para não falar do estiloso HUD. Quanto ao cenário, é memorável, sendo possível dispensar o mapa e a interface de realidade aumentada que revela pontos de interesse, o que é sempre bom sinal. A verticalidade está muito bem implementada e a identidade de lugar tem um papel ativo na narrativa e na jogabilidade. O design de níveis afinado e fluido, por muito improvável que pareça de início, permite uma movimentação a altas velocidades e aos saltos, quase como num jogo de plataformas, especialmente quando se desbloqueiam certas habilidades. O cenário possibilita estas deslocações, e, se formos espertos, é possível chegar a certos sítios aparentemente inalcançáveis que podem conter segredos.

A banda sonora, que se encontra espalhada pelo cenário, é efervescente — uma mistura de géneros como city pop, dance pop ou jazz progressivo com um sabor veranil muito adequado ao paraíso. O tema principal viciante é usado brilhantemente como leitmotiv. Os efeitos sonoros estão bem, especialmente os efeitos extradiegéticos, há apenas um defeito no áudio da água das cascatas. As vozes, regra geral, são meramente representativas e funcionam como frases próprias para várias emoções base de cada personagem, ajudando a exprimir as personalidades vincadas de cada uma. Às vezes ouve-se frases repetidas seguidas ou que não se adequam tão bem ao texto, mas é possível ajustar a frequência das mesmas.

Ainda que tenha uma composição meio despida, a ilha conta com um design de níveis bastante competente e fluido

Quando se arredam os problemas que possui, de Paradise Killer resta uma aventura única, apaixonante e estilosa que é um tremendo sucesso durante a sua duração aproximada de vinte horas. A sua personalidade forte suga o jogador para a trama atrativa, composta por camadas surrealistas que assentam que nem uma luva nos mistérios daquele mundo entranhado de deliciosas histórias, todas enoveladas com grande precisão. Há sempre mais um segredo bem guardado para descobrir na vigésima quarta ilha, mas que Paradise Killer carrega consigo a estampa de jogo de culto é o menos bem guardado de todos.

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