“Parasitas”, de Bong Joon-ho: uma sátira terrivelmente bela

por Tiago Mendes,    24 Setembro, 2019
“Parasitas”, de Bong Joon-ho: uma sátira terrivelmente bela
“Parasitas”, de Bong Joon Ho
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“Imploro-vos mais uma vez – por favor, evitem os spoilers”. Estas são as últimas palavras de um comunicado do realizador Bong Joon-ho, dirigido não só à imprensa como a todos os espectadores. Sentado na cadeira do cinema, com a folha de sala na mão, li aquelas palavras uma e outra vez. “Eu acredito que qualquer cineasta deseje que o seu público sinta um sobressalto a cada viragem na história, seja essa reviravolta grande ou pequena, que – a cada momento – o público se sinta surpreendido e preso ao filme com uma ardente emoção”. Por ter atestado o poder deste acompanhamento às cegas, por ter sido realmente agarrado pela montanha-russa emocional que é a mais recente obra do realizador sul-coreano, não me passa pela cabeça não cumprir a sua vontade. Por isso, respeitarei o pedido de Joon-ho: “coíbam-se – na medida do possível – de revelar o que acontece depois da entrada dos dois irmãos como explicadores”. Combinado.

De facto, por uma questão de gosto pessoal, muitos dos meus filmes preferidos não têm no plot a sua cartada mais forte. Mas o enredo de Parasitas é um dos seus trunfos – principalmente pela evolução vertiginosa com que é apresentado. Não por ser intrincado, labiríntico, ou viver de algum cliffhanger específico; na sua simplicidade e até linearidade, é uma viagem pintada a vários ritmos e usando paletes de cor radicalmente diferentes. A primeira metade, filmada de forma mais poética e com um domínio impecável da cadência das cenas; e uma segunda metade que, como se tivesse batido com a cabeça na parede, vê a sua vocação transformar-se profundamente.

“Parasitas”, de Bong Joon-ho

Parasitas ganhou a Palma de Ouro, em Cannes, no passado mês de Maio. É a primeira vez que filmes asiáticos ganham em dois anos consecutivos – o ano passado, a obra Shoplifters focava-se num agregado familiar japonês, em dificuldades sócio-económicas. Este ano, o galardão é atribuído ao filme de Bong Joon-ho: e tem por pano de fundo, nada mais nada menos, que um agregado familiar sul-coreano a viver na pobreza. Estou em crer que as semelhanças entre os dois enredos são mais uma distinção a favor de Parasitas – é incrível que, a partir de uma premissa curiosamente semelhante, o filme acelere vertiginosamente para um cenário bastante diferente e original. Em pouco menos de meia-hora, percebemos que a história não será nada daquilo que inicialmente poderíamos ter imaginado. Até sermos novamente surpreendidos, outra meia-hora depois.

Não queremos tocar mais na história. Falemos de ritmo. Falemos dos encadeamentos da primeira metade do filme, da montagem, dos cortes de câmara e dos movimentos da mesma. Falemos da coordenação entre a personagens principais na execução de um plano intrincado – e na forma ridiculamente fluída e entusiasmante como a cena está montada, acompanhada a música clássica; enquanto espectadores, intuímos o sucesso eminente, mas assistimos deslumbrados às passagens, numa sequência bela e que é talvez o expoente máximo de fotografia de todo o filme. A par da cena da segunda metade, em que a confecção de um prato culinário assume uma importância desmedida, e essa tensão é transmitida com mestria pela câmara. Sem dúvida que Bong Joon-ho domina o sentido de ritmo.

“Parasitas”, de Bong Joon-ho

O trabalho dos actores, é no geral, convincente – com uma ou outra excepção. Permitam-me destacar Cho Yeo-jeong, a actriz que interpreta a mulher rica. Embora sempre a roçar a caricatura – afinal, Parasitas é também uma sátira de si próprio – Yeo-jeong transmite com vivacidade as flutuações emocionais da sua personagem; para além de ser convincente, é um autêntico espectáculo de entretenimento assistir às suas passagens. Sem a energia desta actriz, o filme perderia parte do seu brilho.

Destaque para a banda-sonora original de Jung Jaeil – principalmente o trabalho de piano do primeiro segmento acto do filme, e da marcante peça “The Belt of Faith”, talvez o coração de Parasitas. A certa altura, as composições tornam-se uma alavanca bela e funcional, perfeitamente integrada na narrativa.

“Parasitas”, de Bong Joon-ho

Num acto de autorreferencialidade, a personagem central do filme repete algumas vezes ao longo da história a expressão: “muito metafórico”. De uma forma bem-humorada, o filme vive essa metáfora – que é evidente, mesmo à primeira visualização – e decide misturá-la com doses substanciais de absurdo. Aborda temas fulcrais como a relação entre as classes sociais, a opressão do poder sócio-económico e os limites da moral. De forma mais óbvia ou mais dissimulada, mas sempre consciente de si próprio. É um filme que joga com o físico para sugerir o invisível e o incerto – que nos sustém a respiração em suspense, mas também nos apresenta formulações filosóficas que nos afundam numa espécie de beco existencial, de onde não advirão surpresas.

Numa execução praticamente irrepreensível – embora em momentos muito circunscritos roce um estilo esmorecido e menos interessante – Parasitas é um dos filmes mais interpelativos que tive a oportunidade de assistir. Quando saí da sala de cinema, a realidade estava posta em causa; a força da boa arte não deixa nunca de me surpreender. Embora me sinta estranhamente reconfortado pela forma como o arco da história se completa, sinto que só vou poder efectivamente descansar quando vir o filme uma segunda vez. Ou talvez esta justificação seja apenas um pretexto para querer ver-me embrulhado novamente no turbilhão cinematográfico que é esta obra-prima de Bong Joon-ho.

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