Parecem os dias do fim
E de repente um tipo está em casa, alguma ansiedade contida pelo espartilho do sorriso, mãos nos bolsos em frente à televisão, as coisas vão continuar, pensa, as coisas têm de continuar, o mundo não pára, o mundo nunca parou, mal-grado as guerras, a fome que ainda subsiste em boa parte do planeta, as epidemias de toda a sorte, e os azares do passado e dos outros homens no presente sempre garantem um magro conforto, afinal o povo na sua sabedoria decantada sempre afirmou “com o mal dos outros posso eu bem”, “com o mal dos outros posso eu bem”, resmunga o sujeito para dentro, mas algo nele (talvez o mesmo sujeito na sua iteração mais amedrontada, ou talvez mais lúcida) lhe diz que isto vai ser diferente, que isto já é diferente.
E o mundo não parou, mas o sujeito na televisão acaba de decretar essa possibilidade, diz que o trabalho dele está feito e que podemos todos confiar na lendária robustez do homo lusitanus diante das mais diversas agruras, não há-de ser nada, garante-nos, mas tem na voz um resíduo de embargamento que apenas os nossos órgãos animais conseguem captar e sorrimos mas sorrimos o sorriso da desconfiança, este tipo está-me a enganar, pensamos cá para connosco, este tipo sai daqui e vai-se enfiar na cama, em posição fetal, no bunker do palácio, alguém lhe deixa a comida na mesa-de-cabeceira, alguém lava a sanita por ele, alguém lhe faz as compras. Este tipo está-me a enganar.
E de repente todos os apocalipses zombie nos vêm à cabeça, uma enxurrada de Carpenters para a qual um sujeito comum nunca está preparado, e as muitas declarações de guerra a que assistimos ou que vimos em diferido de outros tempos, e aqueles filmes de invasões alienígenas nos quais um presidente americano vai à televisão fazer um directo muito sóbrio mas também muito capaz de nos arrepiar os pêlos do braço, até os comemos, pensamos sentados no sofá da sala, até os comemos, se fosse eu agora saía de casa com o heroísmo todo nos alforges e mostrava àqueles invasores muito pouco estéticos o que é meterem-se com uma nação de poetas. Não seja por isso, é a tua vez agora.
E depois explicam-nos que afinal a coragem é não fazer nada, é ser de gelo e ser capaz de atravessar o deserto da modorra sem queimar o fusível, mas temos com que nos entreter, dizem, podem arrumar a casa, organizar a colecção de selos, arrumar os cabos soltos numa caixa, não podem é combater, o inimigo é muito pequenino, demasiado pequenino para que as armas a que os americanos recorrem para resolverem uma escaramuça no trânsito terem algum efeito, pelo que o melhor é assumirmos a nossa dimensão como uma inesperada desvantagem e fazer de mortos como aqueles ratinhos pequenos ante a visão de um gato, pode ser que muito quietinhos o bicho nãos nos veja, pode ser que seja meio míope ou meio parvo, é pena não termos uma pessoa que nos deixe a comida na mesa-de-cabeceira, que nos lave a sanita, que nos faça as compras. Isto com condições podia ser quase agradável.
Quando isto passar, se isto passar, quando isto passar vamos todos para aquela discoteca onde se dança até às seis da manhã e dançamos até às seis da manhã ou até mais tarde, que eles não hão-de ter coragem para nos mandar embora depois de tanto tempo a pensar naquilo, nos rostos dos outros onde encontramos um vestígio de conforto e de sentido, a maior parte de nós não está preparada para ficar a ver de longe o formigueiro, a misantropia na maior parte das vezes é apenas chamariz pouco sofisticado e até os suicidas de Facebook já se começam a queixar da solidão, a verdade é que não estávamos preparados para isto e nem sabíamos que não o estávamos porque à distância das coisas enfrentamo-las sempre com o heroísmo todo nos alforges, mas ao perto é diferente, sentimos-lhe o bafo e o calor e a coragem foge para a cave e é ela mesma a colocar o açaime sobre a boca, não estávamos preparados para isto.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.