Pasto para o bicho
Há vários tipos de cegueiras e talvez a mais perigosa seja aquela em que não só um sujeito pensa que vê como acredita que está no ponto mais adequado para dar conta do que se passa. Esta é a terrível cegueira que, em graus distintos, nos afecta a todos. Contra mim falo.
A internet transformou o mundo assíncrono e exótico do século passado num espectáculo incessante de simultaneidade e uniformidade, de tal modo que tudo quanto nos surge nas mais diversas plataformas onde voluntaria ou involuntariamente somos expostos a informação nos parece mais ou menos compreensível. A globalização e a informação instantânea operaram uma lenta mas inexorável desexotificação do mundo.
Tirando locais excepcionalmente remotos – não tanto a nível geográfico, mas sobretudo a nível da presença das múltiplas formas de redes de comunicação imediata – tudo nos parece mais ou menos igual, mais ou menos previsível, mais ou menos compreensível, seja um desastre nuclear no Japão, uma perseguição de cariz étnico em Myanmar ou uma luta armada na América do Sul. Parece que está tudo aqui ao lado, a decorrer no quintal da nossa vasta argúcia.
Temos um ponto de vista essencialmente preguiçoso, como dizia Nietzsche, dado que funciona no modo da abreviatura, focando-se de modo muito mais agudo naquilo que realidades muito diversas têm de comum e sendo bastante mais permissivo em relação às diferenças que apresentam. Dir-se-á que é uma questão de sobrevivência. Somos animais, pelo que o processo de categorização, por muito atabalhoado que seja, é uma das formas mais eficazes que temos de mapear o nosso millieu e os perigos que nele podem ocorrer.
O problema é quando desatentos ao laxismo constitutivo no nosso ponto de vista nos deixamos enredar numa pseudo-compreensão da realidade nas suas múltiplas iterações, tomando as notas comuns pelo essencial e as diferenças pelo acessório. É assim que cresce, obscenamente, o especialista instantâneo que cada um alimenta dentro de si.
O mais interessante é que esta criatura viciada numa compreensão tão superficial como automática das coisas não perde força quando confrontada com os inúmeros erros de análise que produz. Ela própria acaba por ler esses erros pela óptica do fundamental e do detalhe: enganei-me, sim, mas são erros no âmbito do acessório. O essencial, esse, está perfeitamente dominado.
Reconhecem este animal? Das caixas de comentários? Dos artigos de opinião? Das conversas de café? Do espelho? Ele está em todo o lado.
Ao invés das beatificadas técnicas de mindfullness e de pensamento positivo, que mais não são do que a inversão do ónus da prova em relação às causas dos nossos destinos tremendamente minúsculos (se não és feliz ou bem-sucedido é porque não estás a querer sê-lo verdadeira ou suficientemente), devíamos ter muito cuidado com o pasto que damos a esta criatura para que não cresça para além da dimensão em que é verdadeiramente útil, sob pena de nos atermos de forma permanente a um modo de pensar rudimentar, infantil e, sobretudo, tremendamente erróneo.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.