Paulina Chiziane

Rimos. É que rimos muito. A bandeiras despregadas. Como pessoas que se entendem na totalidade. Como irmãos. Esta é a sensação com que fiquei e com que fico de cada vez que encontro outros como eu. Talvez os escritores sejam todos do mesmo sangue. Talvez pertençamos a alguma espécie de linhagem ou sucessão. (Linhagem não, que soa senhorial ou a produção em massa). Talvez, lá no fundo, sejamos feitos de semelhante farinha. Feitos para exercer a nossa função de mensageiros do adiante. Os escritores são os carteiros do futuro?
Há uma expressão perto disto: “é necessário um para reconhecer o outro”. A verdade é que quando dois se encontram, acabam por trocar automaticamente as chaves do seu interior. Surge, então, uma compreensão mútua, quase gémea. Uma compreensão que advém do próprio ofício. Do sacrifício desse osso. Escrever dói. E é por isso que rimos. Rimos da nossa dor na presença de outro ciente dela. Nessa comunhão, rimos muito. A bandeiras despregadas. Parece até que jogamos em casa. Que vestimos as cores da mesma seleção. E eu só precisei de lhe desenrolar o sorriso com observações parvas, de lhe chegar aos olhos cinza-finos, para que ela se reconhecesse em mim. Os artistas espelham-se uns nos próximos. São, também, espelhos da sociedade, mas isso fica para outra discussão. Nesta crónica, quero somente recordar o porquê de tanto riso e sorriso. É essa a memória que tenho de Paulina. De comungarmos as nossas gargalhadas enquanto lhe asseverava que a cada dia demorava mais a escrever. “Será normal?” É versão atrás de. À primeira, fica impossível, à segunda pior… “Terei a mão avariada? É que me custa tanto…”. E ela serena como rio que sabe para onde corre (claramente havia passado por pesadelo idêntico), ria e riu até poisar o seguinte sobre o assunto: “Um dia vai descobrir que a primeira versão era a melhor”. E ainda riu de sobra…
Passados anos (?), lembro-me de ouvir o António Lobo Antunes dizer isto: “a primeira versão contém dentro dela as soluções finais” e que o aprendera muito tarde. Também eu. Até publicar o meu segundo livro.
Paulina Chiziane estava sentada num muro à porta da tenda onde havia falado por mais de uma hora. Estava agora descontraída. Não sei se a fumar. Não sei se rodeada de amigos. Sei que havia gente ao seu lado e que iria embora em breve. Queria um autógrafo. Para ser franco, queria falar-lhe e o autógrafo promovia essa desculpa. Estava em crer que me saberia dar algo que pudesse trazer para o meu trabalho. Porventura um conselho. Pedi-o na forma de uma queixa. Que era difícil demais. Que era impossível destacar-me dos tubarões. Que após os esforços para publicitar o meu primeiro livro, os abutres se haviam acercado de mim. Que tudo (novamente!) era difícil demais — escrever, ser respeitado pelo que escrevo e ainda destacar-me com o que escrevo. E ela, no seu tempo, pachorrenta como rocha assente em planície, sem dúvidas, rematou: “tem de derrubar os velhos. Eu também o fiz” e eu respondi-lhe algo que não importa, rindo baralhado, sem entender a profundidade da matéria, pensando naqueles velhos — não tão velhos assim, que me haviam tratado mal, por receio, arrogância ou maldade. O que, durante algum tempo, me fez chegar à literatura carregado de ódio e rancor, focado em derrubá-los pelo prazer de os ver no chão e não pelo prazer de me ver algures mais adiante. Hoje, dou graças por ter mudado e me ter aproximado um pouco mais de Paulina.