“Paz”, de José Oliveira e Marta Ramos: pela preservação dos valores clássicos

por Bruno Victorino,    10 Maio, 2022
“Paz”, de José Oliveira e Marta Ramos: pela preservação dos valores clássicos
“Paz”, de José Oliveira e Marta Ramos
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Este artigo pode conter spoilers.

“Oiçam o que tem a dizer o homem que está em silêncio”. É com esta citação que José Oliveira e Marta Ramos abrem a sua curta-metragem, montada a partir de  imagens de arquivo RTP da guerra colonial e imagens que ficaram de fora do corte final do filme “Guerra” (2019), realizado pelos próprios. Segundo os cineastas, foram provavelmente as últimas palavras que o ator José Lopes lhes endereçou antes de falecer, e que acabam por representar o testemunho dos valores que lhes deixou e que regem o seu processo cinematográfico.

Depois de uma sequência de imagens de arquivo, o filme inicia com o personagem de José Lopes a visitar uma campa no cemitério, brindando posteriormente à mesa com um amigo. Nestas duas primeiras cenas, filmadas sob luz crepuscular, fica subjacente um sentimento de melancólica despedida. No entanto, a partir desse momento, a curta-metragem adquire bastante luminosidade, principalmente nas cenas filmadas nos Amigos do Minho. Como se os realizadores começassem por assinalar a partida de José Lopes para depois lhe dedicarem uma série de momentos de alegria, camaradagem e convívio com os seus amigos.

“Paz”, de José Oliveira e Marta Ramos / DR

O contraste é, efetivamente, um dos grandes motivos do filme, manifestando-se em várias dimensões. Desde logo entre as imagens da guerra colonial e as imagens do “Guerra”. Para além das características texturais dos formatos e da utilização da cor/preto e branco, a justaposição intercalada cria um efeito disruptivo entre instantes de tensão, inerentes ao quotidiano da guerra, e outros de profunda acalmia e paz. Em sobreposição às cenas da guerra colonial, os cineastas estabeleceram outro contraponto, através da montagem sonora. Ao retirar o som aos arquivos, substituindo-o por sons equivalentes originários de mundos distantes do conflito, criam um diálogo que rompe e dissocia o que vemos do que ouvimos.

A câmara de José Oliveira e Marta Ramos capta a interação entre os veteranos e José Lopes como se ela própria pertencesse àquele espaço, testemunho da proximidade dos realizadores com a família dos Amigos do Minho que os acolheu.”

Esta costura de imagens e de sons assume também outros efeitos. De uma cena dos veteranos a cantar ao som de uma guitarra nos Amigos do Minho, cortamos para a imagem de arquivo de um soldado na guerra colonial a tocar o que aparenta ser uma guitarra improvisada. O raccord é sublinhado pela permanência da música do plano anterior — dos ex-combatentes — fundindo cinematograficamente o passado com o presente. 

A câmara de José Oliveira e Marta Ramos capta a interação entre os veteranos e José Lopes como se ela própria pertencesse àquele espaço, testemunho da proximidade dos realizadores com a família dos Amigos do Minho que os acolheu. Para além de ficção, “Paz”, tal como anteriormente “Guerra”, não deixa de ser um documentário sobre o processo de filmagem, sobre as pessoas que pertencem à comunidade dos Amigos do Minho, sobre José Lopes, sobre um local claramente em vias de extinção, onde perduram valores de amizade e companheirismo, uma forma de estar que não se coaduna com o progresso e a modernidade.   

“Paz”, de José Oliveira e Marta Ramos / DR

O filme termina com uma última homenagem, um grande plano de José Lopes em frente ao espelho, retirado da curta-metragem “Longe” (2016). A cena prosseguia com o ator a cantar, claramente em sofrimento. Os realizadores optaram por ressignificar as imagens, terminando o filme imediatamente antes disso, garantindo um desfecho mais sereno, sem deixar de assinalar toda a dor que aquele olhar ao espelho carrega. Sob os créditos finais surge um último contraponto, o que aparentam ser imagens distantes de um fogo-de-artifício revelam-se ser bombardeamentos na Palestina. Tal como os arquivos da guerra colonial estabelecem um vincado contraste com as leituras de cartas, histórias e cantigas nos Amigos do Minho. Uma alusão à ciclicidade e permanência do conflito armado no mundo, convidando-nos a dar importância às pequenas coisas, à preservação dos valores clássicos e dos locais que os fomentam, enquanto a paz impera e aguardamos pelas próximas guerras.

“Paz” será exibido na 12ª edição dos Encontros Cinematográficos do Fundão, no dia 12 de maio às 14h30, no dia 15 de maio às 18h e na Cinemateca Portuguesa no dia 18 de maio às 19h. Efetuámos uma entrevista aos realizadores do filme que poderá ser lida aqui.

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