“Peaky Blinders”. Um Homem inteligente com o coração destroçado é capaz de tudo
Nunca tive uma experiência de teatro imersivo. Já me rendi algumas vezes a séries, filmes e livros. Já me apaixonei por personagens e odiei outras, de tão envolvente era a narração da sua história. Tirei o chapéu a Lídia, n’O ano da morte de Ricardo Reis. Senti-me Lídia na vida real e no dia da morte de Robb Stark. Curvei-me perante o amor, em tempos de cólera e em tempos idos. Mas não me recordo de ter mergulhado assim, como aconteceu com Peaky Blinders.
Acredito que há sempre um processo de identificação inerente, nestas experiências transreais. O facto de estar a viver em Inglaterra e conhecer grande parte dos locais retratados na série; conseguir já identificar alguns sotaques e conhecer um pouco da história britânica; poderá ter contribuído para tornar esta aventura ainda mais única e especial. Peaky Blinders (2013) tem no seu argumento um sem número de temáticas que se cruzam e entrecruzam, revolvem e desenvolvem ao longo de toda a série. Tanto se poderia escrever sobre este guião que funde, com mestria e requinte, a realidade crua com a arte pura.
Todas(os) temos uma Madame Bovary dentro de nós. Sou mulher e não posso fugir a essa condição. Terminei esta série recentemente mas mergulhei nela de tal forma que suscitou em mim sentimentos e inquietações que me obrigaram a escrever.
Fui empurrada para o pós guerra do início do século XX, onde o decadentismo do século XIX se funde com a poeira de uma guerra que termina e o stress pós traumático dos que nela exerceram serviço militar. O fim da guerra e a esperança, a genialidade e a decadência. Uma espiral imersiva de auto destruição. De precaridade psicológica, de ausência de suporte social. Mais uma vez, o génio e o louco de braço dado.
Thomas Shelby: o percurso de um personagem que atinge o seu auge social ao mesmo compasso que avança para a sua auto destruição. Surge-nos como líder indiscutível mas a ausência de um referencial paterno, a partida precoce da mãe, o roubo de um amor e a culpa de uma perda, rapidamente trazem à tona as suas fragilidades.
O personagem Thomas Shelby é muito mais que o cabecilha de um gangster inglês. A sua construção tem um peso humano e uma significação tamanhos, que nos transportam para ideias existencialistas. Homem de acção e impulsos, “um frenesim irracional controlado pela razão e auto reflexão”, que talvez nem Freud consiga explicar [tendência humana para a categorização, a que também eu não consigo fugir]. Talvez seja isso que o torna tão indecifrável, e tão interessante. Um homem inteligente com o coração destroçado é capaz de tudo.
“Um mundo interior em ruínas pode ser a mais perigosa ferramenta de vida, do mesmo modo que é a mais poderosa ferramenta ao serviço da arte.”
A sua ascensão social e política na série acontece em simultâneo com o seu declínio pessoal. Movimentos inversos que conduzem ao mesmo abismo. Os impulsos autodestrutivos, as noites em branco, o álcool e o ópio, funcionam como um cocktail anestésico para a dura realidade. Paraísos artificiais, explica Baudelaire, na procura da manutenção de funções básicas.
Fui totalmente apanhada de surpresa e empurrada para dentro desta trama que, de resto, não me era totalmente desconhecida. Quis a vida, e o meu percurso académico, que tivesse tido a oportunidade de me familiarizar com estas temáticas. Há cinco anos comecei a ler Sartre. Nunca terminei o único livro que iniciei.
Nem sempre é fácil processar aquelas palavras, mesmo que à beira mar. Nem a maresia alivia o seu peso. Esta personagem fez-me querer retomar a leitura que nunca terminei. Compreender o pós guerra de um soldado com a morte na alma. Tentar um entendimento do personagem. Conhecer o seu mundo e aquilo que constituiu as bases da sua (des)construção. Há qualquer coisa de místico nesta incitação. Nunca teremos respostas mas sim mais perguntas, portas fechadas e outras entreabertas que incitam a nossa curiosidade. Proust nunca esteve tão certo.
Deixo-vos algumas linhas do livro, que poderiam ser linhas do guião desta série e palavras deste personagem. A magia da arte está em ligar séculos com a leveza de quem vira a página de um livro.
“A morte anda à volta dele como um odor, como o fim de um domingo; pela primeira vez na vida sente-se vagamente culpado. Culpado de estar só. Culpado de pensar e viver. Culpado de não estar morto. Para além dos muros há casas mortas e negras com todos os olhos fechados; eternidade de pedra.”
“A minha decadência, tenho de a viver, é um gosto que trago na boca, nunca perceberás isso.”
Jean Paul Sartre in Com a Morte na Alma, 1949.
Aos que tiverem a curiosidade de experimentar, que Thomas Shelby seja para vós também este ícone e esta lenda inspiracional que é para mim. Que vos envolva e vos machuque como fez comigo, é isto o legado da arte.
Crónica de Catarina Bernardo Santos