Pepetela na Escritaria: “a ideia de livro está em risco”

por Mário Rufino,    8 Outubro, 2018
Pepetela na Escritaria: “a ideia de livro está em risco”

A 11.ª edição da Escritaria homenageou o escritor angolano Pepetela. A cidade de Penafiel reuniu-se no reconhecimento da vida e obra de um dos mais importantes escritores lusófonos.

Entre os muitos festivais literários portugueses, a Escritaria destaca-se pela sua singularidade. Em detrimento do tradicional tema, sobre o qual diversos autores convidados se detêm, um só autor concentra toda a atenção do público e da organização.

Todos os anos, a cidade de Penafiel marca no seu corpo a figura e as palavras de um homenageado. Depois de Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Mia Couto, António Lobo Antunes, Mário de Carvalho, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Alice Vieira e Miguel Sousa Tavares, foi a vez do autor de “A Geração da Utopia” ver como uma cidade se entrega em agradecimento às muitas horas dedicadas à escrita.
De 01 a 07 de Outubro, Penafiel consagrou a obra de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela.
Conferências, entrevistas, apresentação do seu novo livro, encontro com alunos do secundário, exposições, arte pública, decorações nas lojas, dramatizações de excertos de livros compuseram um pan-óptico sobre a obra do escritor angolano vencedor do Prémio Camões em 1997.

Depois do descerramento da silhueta e da frase, no dia 03, e do recital e de visita a uma escola, no dia 04 (os dois primeiros dias foram preenchidos por atividades paralelas), o jornalista Fernando Alves conversou com o escritor no Museu Municipal de Penafiel, já caía a tarde do antepenúltimo dia da Escritaria.
Não se viam desde que conversaram noutro festival, na Madeira, em 2017. Recomeçaram como se tivessem interrompido a conversa há cinco minutos, num café ali ao lado, tal a evidente empatia entre ambos.
“É esmagador”, começou por dizer Pepetela, sobre a receção da cidade.

Fotos nas montras, por vezes entre cuecas e sutiãs, placards, caixotes, grafites, azulejos com a imagem do autor, folhetos, instalações. Toda a cidade se envolve na celebração. “Parece que toda a gente me conhece”, afirmou.
A silhueta em ferro, da autoria da escultora Rita Melo, fica na praça da Escritaria, perto da silhueta de Mário Cláudio e da frase de Mário de Carvalho. Quem olha para a silhueta de Pepetela vê, como ponto de fuga, o Sameiro. A sua frase fica a dois passos:
“A transferência de conhecimentos, ideias e emoções através dos livros devia ser eterna, mas está em risco”
“Há pessimismo nessa frase”, perguntou Fernando Alves
“A ideia de livro está em risco. Há menos edição, as pessoas compram menos, leem menos. Há outras formas de entretenimento e de educação. É possível que o livro seja substituído por outra coisa qualquer. Admito que acabem as livrarias.”

Em consequência, tem-se visto a substituição do conhecimento pela acumulação de informação. “A informação é cada vez mais superficial”, afirmou Pepetela. O livro implica disponibilidade e tempo.
“Já não há tempo para os cágados, já não há tempo para a sabedoria”.
De Penafiel viajou-se para Benguela, cidade de origem de Pepetela e afetiva de Fernando Alves. Benguela é personagem e substrato na obra do escritor angolano. Cidade de personagens ímpares, como um poeta de fato e gravata andando de bicicleta que parava para recitar poemas. Fernando Alves e Pepetela caminharam em território conhecido, comum.

Penafiel e Benguela ficam agora ligadas na vida de um autor essencial na literatura lusófona. E foi sempre nesta viagem emocional, entre Angola e Portugal, ou mesmo entre África e Europa que a conversa se desenvolveu.
Segundo Pepetela, África está a encerrar um ciclo. Há menos guerras e começa a haver países que são exemplares na governação. Apesar da África do Sul, que tem um problema mal resolvido com a distribuição de terras. Com o aumento da população ainda ficou mais difícil redistribuir. Isso cria tensões. Parece que África e, particularmente, Angola estão em contraciclo com a Europa e com os Estados Unidos. A democracia consolida-se no continente africano enquanto parece desmembrar-se onde estava consolidada. Essa evolução de Angola está espelhada na extensa, diversificada e sempre em expansão obra do escritor angolano.
“Sua Excelência de corpo presente”, o seu mais recente livro, incide sobre o fim do ciclo antes da normalização política.
“Quando não sacudimos as figuras dos ditadores, eles estão constantemente a voltar”. Este novo livro está a suscitar discussões porque estão a colar as personagens a pessoas reais.

A primeira pessoa a ler algumas palavras do livro não foi um amigo, a editora ou um revisor. Foi uma menina de sete anos. A neta ficava a ver os livros no escritório do autor e observava-o a escrever. Admirava-se com tantos livros. Perguntou-lhe se tinha escrito aquilo tudo. Como fazes, perguntou. Anda cá ver, respondeu Pepetela. Sentou-se ao colo e leu. Foi a primeira leitora. Simbólico. Uma menina lê a história de um ditador falecido em tempos de mudança de regime no país.
“Os livros de Pepetela têm sempre uma arma apontada ao leitor, que é a do riso, é a do sarcasmo”, disse o jornalista da TSF.
Este livro foi o mais difícil de escrever por causa da idade, por causa da memória. Voltou a escrever de pé, por causa das dores nas costas.
Para o dia seguinte ficou programada a conferência sobre a obra do autor, em que participaram o jornalista José Carlos Vasconcelos, o escritor Ondjaki, a professora universitária Inocência Mata, o homenageado e o Presidente da Câmara de Penafiel Antonino de Sousa.

Num tom académico, Inocência Mata contextualizou a obra com a vida do autor.
Segundo a professora universitária, o autor convoca a experiência e a vivência para a sua escrita, indo além do individual. Pepetela traça as características de várias gerações. Quase obra a obra, foi feita a ligação entre o texto literário e a vida do autor, com inevitáveis ligações a questões sociopolíticas de Angola. Um discurso com um conteúdo coerente com o que foi conversado entre Fernando Alves e Pepetela, no dia anterior.
Para Ondjaki, Pepetela ultrapassou as fronteiras da sua cidade e do seu país.

Numa intervenção mais afetiva, Ondjaki afirmou que Pepetela e outros escritores são intervenientes importantes no caminho para este novo tempo em Angola. Eles são também os fazedores da paz. Mesmo quando andaram em guerra era para fazer a paz e não para refazer e manter a guerra. Semearam paz. Eles ainda eram crianças quando lhes caiu um país nas mãos. Eles prepararam o barro para que outras pessoas o moldassem.
A aceitação do futuro é a aceitação da passagem do testemunho. Dar o espaço, colaborando com os jovens, em simultâneo com a própria retirada. É um orgulho para Ondjaki ter estado perto dessa caminhada.

Cada vez é mais difícil para José Carlos Vasconcelos separar o escritor do cidadão, confessando já não ter paciência para quem não percebe o seu próprio dever cívico. Pepetela é um escritor com profunda consciência da sua responsabilidade cívica. Segundo o editor do Jornal de Letras, há muita artificialidade em muita produção literária recente, com vénias a modas. Não é o que passa com a literatura de Pepetela. A imaginação ajuda a fazer a realidade mais real. Os livros de Pepetela são exemplares nesse aspeto. Repare-se no último livro. Dentro desses parâmetros, ele é um historiador de Angola. Há poucos escritores que se sirvam do humor e do sarcasmo como Pepetela. E não só na escrita, como se viu durante os dias da Escritaria.

O aprofundamento do conhecimento do que é escrito, a receção dos textos pelo leitor comum e a divulgação popular em eventos como o da Escritaria inscrevem a produção literária de um autor – neste caso Pepetela – em vários estratos sociais e diferentes níveis de conhecimento. Esta construção de várias comunidades de leitura (ou de uma maior que congrega diferentes características) é essencial para que uma obra, seja individual ou como conjunto, sobreviva ao tempo e se inscreva no cânone. Pepetela escreve há décadas e continua a ser lido, debatido e, como no caso da Escritaria, louvado.
Pepetela faz agora parte do corpo e da memória de Penafiel.

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