A personificação do amor no cinema de Wong Kar-Wai

por João Pinho,    12 Maio, 2018
A personificação do amor no cinema de Wong Kar-Wai
“In the Mood for Love” (2000)
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O amor em Wong Kar-Wai é um sonho triste e longínquo. Um amor mútuo, mas impossível. Um amor que não poderia estar mais relacionado numa simbiose com o espaço onde o mesmo é despoletado. A cidade de Hong Kong, grande, dinâmica, confusa, onde milhões se movimentam, milhões tomam as suas refeições, onde cada um é cada vez mais só um número.

Os filmes do realizador asiático são apaixonantes. Conhecer a cidade é conhecer as relações tão próximas, mas tão frustrantes. Na maioria das vezes, a noite é o tema de fundo com as luzes vibrantes néon, os mil e um carros que desaparecem no mesmo instante em que entram no foco da câmara ou as ruas solitárias de madrugada. A forma de captar o movimento é sempre utilizada de forma inteligente, principalmente para dar uma sensação de distorção e de confusão. A câmara não está parada, quase como se estivesse a correr atrás das próprias personagens, criando a ilusão de que as cenas ocorrem a uma velocidade maior à da realidade. A narração é a ligação directa entre a dor das personagens e o público. A tela não separa o mundo ficcional do nosso e, por isso, nós próprios acabamos por ser abalados. Os pensamentos mais secretos e profundos são partilhados com toda a honestidade, como se as personagens soubessem que nós as estamos a ouvir e merecêssemos total confiança.

Os principais sentimentos são quase sempre negativos. A tristeza, a frustração e o amor preenchem os cenários através de cores muito fortes como o vermelho, o verde ou o amarelo. Tudo anda à volta dessa cor temática criando um mundo que está num limbo entre a realidade e a ficção. Os espelhos e os vidros são utilizados para explorar com mais profundidade as lutas internas e os verdadeiros sentimentos das personagens. É utilizado como um verdadeiro espelho da realidade onde a aura de ilusão evapora e elas são confrontadas com a sua tristeza e a sua solidão, ou então é através dele que observamos os momentos mais íntimos das mesmas, como se o público fosse um ladrão da privacidade dos outros. E este objecto encontra-se em todo o lado, nos táxis, dentro de casa, nas ruas ou no local de trabalho.

A constante chuva, que tanto mostra a solidão de cada um, como une o casal no frio da noite ou a música, são marcas em todos os seus filmes. Neste clima, as personagens são obrigadas a reflectir a sua situação actual. A comida, como a chuva, está sempre no meio da mesa enquanto pessoas falam, independentemente do tema ou do ambiente. Este elemento como também a escolha das várias roupas consoante as estações, corroboram com a nossa realidade, com o nosso quotidiano, mas, ao contrário da segunda, a primeira dá um valor de monotonia à vida das pessoas, como se incessantemente fizéssemos as mesmas coisas, um ciclo vicioso que não conseguíssemos terminar ou alterar.

A música nunca é utilizada de forma ingénua. Mesmo quando se trata de um pop romântico, é com uma intenção sincera, porque o amor é isso mesmo, genuíno e, por vezes, simplesmente parvo. Por vezes, tem momentos de uma tensão sexual onde o tango é o maestro dos sentimentos; por outras, a nostalgia de um passado distante e incansável é transmitida pela voz de Caetano Veloso. Acima de tudo, o amor é um caminho solitário por mais irónico que possa parecer. No fim, numa sala, talvez esteja lá a pessoa por quem tanto sofremos, mas, a meio, é um corredor infinito vermelho como uma das cenas do In The Mood for Love retrata de forma muito intensa. Ou então é um comboio, como em 2046, cujo bilhete nós levantámos no início da viagem, mas que não temos a certeza que ao destino chegaremos. Tanto pode demorar metade da nossa vida como vinte vidas, é um risco para uma vida tão curta.

O amor é intemporal, é cíclico e viciado, é tóxico, é bonito e ultrapassa as barreiras de género. Os mesmos erros são feitos com as mesmas pessoas ou com novos amores que se calhar não têm assim tanto de novo. Ele depende dos sofredores, da cidade onde eles habitam, do prédio onde dormem e das ruas que percorrem. No fim, não existe necessariamente uma conclusão, talvez só mais uma caminhada incessante em que, no meio, olhares são trocados, desejos trocados, ritmos dançados e a luz da lâmpada projecta-se na nossa cara enquanto contemplamos a miséria humana. Tudo isto apesar de, ao mesmo tempo, estarmos à espera de algo novo na nossa vida, um desejo tão humano. Ver isto não é fácil. É duro fazermos uma introspetiva, poucos talvez o queiram fazer. No entanto, o realizador acerta onde mais nos magoa. Por isso, cada amor que ele explora e cada mundo que ele cria é uma nova perspectiva dos sentimentos humanos.

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