“Petite Maman”, o regresso ao futuro de Céline Sciamma
Este artigo pode conter spoilers.
Depois do êxito de “Portrait de la Jeunne Fille en Fue” (2019), Céline Sciamma regressa às salas de cinema portuguesas com um filme mais simples e contido, com poucas personagens e circunscrito fundamentalmente ao interior de duas habitações e ao bosque que as rodeia. Nelly (Joséphine Sanz) é uma criança de 8 anos que, perante a morte da avó materna, ajuda os seus pais a desocupar a casa onde a mãe cresceu. Nelly explora os espaços pisados outrora pela sua progenitora até ao dia em que conhece uma criança da sua idade e com ela constrói uma relação de amizade e descoberta.
A subtileza de “Petite Maman” está na forma como progressivamente nos são mostradas pequenas pistas que convergem para o fenómeno que o próprio título do filme pressagia. A cabana no bosque, o nome da outra criança, o padrão do papel de parede por trás do armário, a bengala da avó, etc. Tudo isto mantendo uma abordagem realista, utilizando como recurso apenas as elipses que nos guiam de uma cena para a seguinte, e deixando que os espaços em branco sejam preenchidos pelo espectador. É a própria montagem que vai fundindo as duas casas, reforçando a equivalência dos espaços.
A cineasta francesa demarca-se assim de qualquer efeito especial e o interesse é suscitado, precisamente, pela ambiguidade do que poderá estar na origem deste acontecimento metafísico, alcançado através da manipulação espaço-temporal cinematográfica, sem que exista uma preocupação com a verossimilhança. As composições de “Petite Maman” acompanham a delicadeza e minimalismo da narrativa, quadros onde abundam os tons outonais — no bosque, e os tons pastel — no interior das habitações.
“Petite Maman” remete para outra obra recente com nuances fabulares — “What Do We See When We Look at the Sky?” (2021), de Alexandre Koberidze. Também o realizador georgiano se abstém de qualquer efeito externo, consumando a sua proposta através da utilização inventiva da linguagem cinematográfica. Ambos os filmes levam o seu tempo a alcançar os seus propósitos, uma contenção que vai colhendo efeitos dramáticos de pequenos gestos de afeto, que, no contexto em que surgem, adquirem um impacto diferenciado.
No entanto, que não se confunda a alusão à economia e parcimónia do filme com a densidade das reflexões que Petite Maman suscita. Sem qualquer imposição ou didatismo, Sciamma aflora questões relacionadas com o peso da herança que passa de mãe para filha, do que fica por dizer nas relações parentais, da forma como se lida com o trauma e o quanto os espaços físicos ficam de tal forma cristalizados na nossa experiência, que simplesmente nos é impossível permanecer ou regressar.