Piano como o Tigran Hamasyan? Tão poucos
Nos últimos tempos, tenho explorado imensas texturas musicais de imensas proveniências diferentes. Porém, poucas como um rapaz da Arménia que descobri um dia destes e que me roo sempre para partilhar com alguém. Por estranho que (me) pareça, pouco feedback me foi dado sobre ele. No entanto, teimo em afirmar que ele merece uma plataforma em que o ouçam. No estilo de um jazz infundido com notas folclóricas e daqueles bem admirados na academia, é reconhecido e louvado. Porém, por entre os que mergulham, assiduamente, em tanta e tão boa música, vai passando pelos pingos da chuva.
Entendo, como missão, a de dar a conhecer este verdadeiro tigre do piano. Uma descoberta que fiz na playlist de um dos meus preferidos, o Tom Misch. Descobri esta música, acompanhada por um videoclip absolutamente voraz. Percebi ao que vim, mas ligeiramente, já que a viagem ainda agora havia começado. Veja-se (e ouça-se):
Não é um jazz comum. É quase uma “metalização” do género, que nem é funky, nem se confina à nostalgia. Um rasgo em muito inigualável, em especial tendo em conta as origens do artista. Falo, então, de Tigran Hamasyan, nascido a 17 de julho de 1987 numa Arménia que ainda era soviética. Em miúdo, já sonhava em deambular entre o piano, que aprendeu a tocar aos três anos, e a guitarra, produzindo sonoridades em muito similares ao thrash metal. Embora ainda viva na capital do país, Yerevan, ele havia crescido em Gyumri, a noroeste. E, embora viva na Arménia, fértil foi a sua passagem pelos Estados Unidos, onde granjeou uma reputação de nicho notável. Isto porque trazia consigo as passagens folclóricas das suas raízes. Ao mesmo tempo que não esquecia os compositores clássicos, como Avet Terterian ou Arno Babajanian, sempre fez questão de emprestar a voz (ou de se fazer valer de colaboradores) para entoar esses cânticos tão caraterísticos, que me encantaram de tal forma que me fizeram perseguir a sua música.
Vim ter, em especial, a dois álbuns. O primeiro, de 2011, de seu nome “A Fable”. À data da gravação, um ano antes, ele contava só com 23 anos. Porém, já se fazia sentir uma música bem diferenciada, com muitas referências orientais e, em especial, à sua proveniência. Foi um gosto, embora ainda não estivesse bem a contar com o que vinha aí, “Shadow Theater”. Se, dantes, tinha sido paixão, aí, tornou-se amor. Fui totalmente arrebatado pelo arraso e pelo vigor que Hamasyan, a partir das suas notas, trazia. Nunca havia ouvido tal coisa. Um jazz que se tornou metal, pelo modo compulsivo como eu agitava a cabeça e o corpo. Nunca o jazz me havia tomado assim, de assalto, com tanta violência, mas, ao mesmo tempo, com tanto gosto. Para que eu possa partilhar um pouco daquilo que senti, com um rasgo de autenticidade, deixo, ao vivo, o que Hamasyan — ao lado da cantora Areni Agbanian, do saxofonista Ben Wendel, do baixista Sam Minaie e do baterista Nate Wood — fez. Ainda corria o 2010 e já havia coisas destas no mundo.
Não passei tanto pelos álbuns seguintes, “Mockroot” (2015), “Luys i Luso” (do mesmo ano, que recorda o genocídio arménio cem anos depois) e “An Ancient Observer” (2017). Passei ao de leve por um chamado “Atmosphères” (2016), uma coisa bem mais ambiental com o trompetista Arve Henriksen, o guitarrista Eivind Aarset e o produto Jan Bang, à boa maneira nórdica. Quero deixar ainda algo para ouvir de novo, algo para descobrir. Algo que não fiz em “The Call Within” (2020) ou “StandArt” (2022, em que interpreta vários dos temas de referência do cancioneiro norte-americano). Sei que esteve pela Póvoa de Varzim no passado mês de julho de 2021, algo de que não me esqueço porque, com bilhete marcado, vejo as restrições apertarem e a não poder ir. Um prémio que achava justo, depois de tanto tempo a querer descobrir música do mundo e a cruzá-la com o meu amado jazz. Contudo, não havia chegado a hora. É algo pelo qual ainda teimo em aguardar, de o ver, de o deixar arrebatar-me conforme havia feito a quilómetros de distância, pelos concertos do Youtube ou pelos álbuns no Spotify.
Também havia descoberto, entretanto, com o seu oud (um alaúde com raízes no Médio Oriente), o tunisino Dhafer Youssef. Sabia que tinham colaborado e sabia que ambos partilhavam essa afeição muito grande pelos sons folclóricos e locais. Mesmo assim, nada havia feito aquilo que Hamasyan, por si só, tinha criado em mim. Uma sensação de plenitude e de completude, de verdade. Não fingidos por serem moda ou por eu fazer questão de gostar. Simplesmente pela música existir, em tantas camadas que eu não tenho arte nem engenho para descodificar (em especial a parte formal e teórica), mas que percebo que roça a ideia que muitos conceberam como perfeição.
Foi o que encontrei neste arménio quase anónimo. Um poço de maravilha e de fascínio, que teima em se autorrenovar e em se enriquecer conforme vai sendo descoberto. Como a sede não é só minha, faço questão em dar a conhecer, em divulgar, em procurar que outros tantos possam ir sentido o que eu senti conforme fui ouvindo, pontualmente, para não me embriagar com tão delicioso refresco. Em cada audição, não obstante, a promessa de plenitude. Qual promessa eleitoral, vai-se cumprindo vez após vez, enquanto novas nuances vão aparecendo e ainda tornando cada experiência mais harmoniosa e rica. Como Hamasyan? Definitivamente tão, mas tão poucos. E a descoberta prossegue, com data destinada para o próximo dia 5 de dezembro, em plena Casa da Música, ao abrigo do Misty Fest (no dia seguinte, estará por Lisboa, no Centro Cultural de Belém). De igual modo, mergulhamos no saber e no ser musical de Hamasyan numa conversa que passou a meia-hora, onde validamos os sinais que nos foram dados onde validamos os sinais que nos foram dados (a conversa será partilhada em conjunto com a cobertura do concerto que dará no Porto). De qualquer forma, encontrar-nos-emos, mais de perto, pela Casa da Música, na esperança de que a graça musical seja, enfim, materializada na tangibilidade da sua presença.