Pinóquio: estará a sociedade preparada para o que não é útil?

por Ana Monteiro Fernandes,    11 Abril, 2023
Pinóquio: estará a sociedade preparada para o que não é útil?
Fotografia de Vlad Hilitanu / Unsplash
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Algumas das grandes questões da humanidade são estas: o ser humano é bom na sua forma natural ou é a sociedade que o corrompe? Mas se a maldade existe na sociedade, isso não significa que a maldade também pode ser inerente ao ser humano? Que papel pode ter a educação aqui? E mais importante ainda, que lugar pode a criança ocupar na sociedade, principalmente quando não lhe pode ser atribuído um papel utilitário, ainda, além da sua formação? E de que forma a sociedade nos molda? Não será que o faz tendo em conta os estereótipos que vamos assimilando ao longo da nossa existência?

O ser humano vai-se formando em constante progressão sem nunca se desvincular de um qualquer meio ambiente que o envolva. Por isso mesmo, essa questão de sermos naturalmente bons, ou maus, ou se é a sociedade que nos faz assim, sempre foi complicada e causa para várias teorias. O que se pode afirmar é que há um consenso que dita que o meio-ambiente e as nossas vivências têm, sim, uma influência na forma como vamos crescendo, evoluindo e formando enquanto pessoas. Dizer isto, porém, não é o mesmo que dizer que o corpo humano é formado por uma determinada percentagem de água, ou uma determinada percentagem de células ou que é constituído por um dado número de ossos. Não se pode dizer, portanto, que somos 20% resultado do nosso meio-ambiente e 80% resultado da nossa predisposição natural, ou vice-versa. Somos resultado de uma simbiose muito bem instituída e, como tal, se uma ínfima parte dessa mistura se alterasse, isso seria o suficiente para desencadear uma diferença em nós.

Por esta mesma razão é que a história do pequeno Pinóquio é interessante. Na história original, no início, a criança que se forma a partir de um pedaço de madeira é muito mais travessa do que no filme da Disney, uma vez que chega a agredir o próprio Geppetto, o seu pai, e permite, mesmo, que este seja preso. Responde mal, não sabe como lidar com a frustração, não gosta de ser contrariada e é muito mais atraída pela capa do “apelativo” e “divertido” do que pela racionalidade e responsabilidade — daí o simbolismo de Pinóquio ter “matado” a sua própria consciência. Poderíamos dizer que, sim, na sua predisposição natural — uma vez que Pinóquio derivou de um tronco de madeira sem ter passado por vínculos socias ou sem ter tido um desenvolvimento progressivo, como seria normal, ninguém nasce já com seis anos — há aqui laivos de malvadez. Até que nos lembramos que falamos de uma criança que ainda não tinha conhecido o mundo, ainda não tinha tido oportunidade de passar por experiências que a transformassem e lhe auferissem carácter, e já queriam que ficasse fechada numa escola sem, antes, ter tido a experiência de brincar ou, sequer, ter cheirado uma flor num qualquer banco de jardim.

Curioso que esse lado mais traquina, pelo facto de Pinóquio ainda não ter as emoções primárias bem trabalhadas, coexiste com um lado ingénuo que o faz olhar para as coisas pela primeira vez, sem os estereótipos ou mensagens sociais que vamos atribuindo aos objectos ou aos seres: ora isto tanto o mete em problemas, como o faz subverter a forma como a sociedade, afinal, foi construindo a sua estrutura e hierarquias. E no meio desta hierarquia social, que lugar pode ocupar alguém que ainda está em formação, criação, e, por isso mesmo, ainda não pode gerar lucro e ter uma utilidade como um adulto que corresponda aos parâmetros de vida mais usuais?

As aventuras de Pinóquio foi o primeiro livro infantil do jornalista Carlo Collodi, publicado inicialmente no jornal infantil Giornale per i Bambini, entre 1881 e 1883, e foi escrito com um intento moral para as crianças: se estas não se portarem bem, então há consequências. Nesse sentido, importa destacar que há uma parte do livro em que Pinóquio, originalmente, morre e o autor acaba assim mesmo a história nas páginas do jornal. Gera-se uma tremenda polémica por se tratar da morte de uma personagem principal infantil e, por isso mesmo, o autor é forçado a continuá-la, após vários apelos, embora contrariado. Esta suposta morte de Pinóquio foi a forma mais dura do autor dizer, “vejam, crianças, o que pode acontecer se não se portarem bem, não forem para a escola e não obedecerem!” Numa primeira parte, portanto, não havia intento de fazer de Pinóquio algo mais do que uma criança irascível que foi perdendo as suas oportunidades de mudar. Mas é aqui mesmo que paramos para pensar. Que sociedade novecentista é apresentada no livro? Uma sociedade estratificada entre pobres e ricos, em que aquele que não explora é explorado, rebaixado ou, literalmente, tratado como “um animal de carga e trabalho” sem a mínima possibilidade de expressar uma vontade própria. Basta sair-se porta fora e o perigo está logo à espreita, sem haver a oportunidade de desviar o olhar do caminho já traçado. Não é, de facto, uma sociedade para crianças ou para alguém que ainda está à procura do seu lugar, ou seja, não há um verdadeiro espaço para a busca desse lugar ou para, simplesmente, se ser.

Na sociedade do século XIX, os direitos das crianças ainda não estavam instituídos como hoje estão — basta recordar que a Declaração dos Direitos da Criança só foi adoptada de forma mais abrangente em 1959 pela ONU — e a escola funcionava em moldes diferentes e não era encarada como espaço de recreação também. Se as crianças não estudavam — numa escola à época em que os professores podiam tratar os alunos de forma bastante dura, com palmatórias e as famosa orelhas de burro — trabalhavam e o desenvolvimento do ser humano era encarado a partir de dois binómios, o estado infantil e o estado adulto, sem mais fases de desenvolvimento por intermeio.

Por isso mesmo compreendemos o porquê do jornalista e escritor Paul Lafargue ter escrito, no livro O Direito à Preguiça, com primeira publicação em1883, que “temos hoje as raparigas e as mulheres da fábrica, insignificantes flores de pálidas cores, com um sangue sem rutilância, com o estômago deteriorado, com os membros sem energia! Nunca conheceram o prazer robusto e não seriam capazes de contar atrevidamente como quebraram a sua concha! E as crianças? Doze horas de trabalho para as crianças. Ó miséria! Mas todos os Jules Simon da Academia das Ciências Morais e Políticas, todos os Germiny da jesuitaria, não teriam podido inventar um vício mais embrutecedor para a inteligência das crianças, mais corruptor dos seus instintos, mais destruidor do seu organismo do que o trabalho na atmosfera da oficina capitalista.” Por esta mesma asserção se compreende como o trabalho infantil era algo sério naquele período e, por isso mesmo, torna-se mais perceptível, também, o facto do próprio Pinóquio, depois das suas aventuras, ter sido levado a trabalhar ao limite para conseguir alimento para entregar ao seu pai doente, como espécie de redenção das suas tropelias. Só a partir daí é que mereceria ser um menino, e só a partir daí é que aprenderia a sua lição: ou a escola sem espaço para brincar, ou uma vida de trabalho pesado, tal como um “burro de carga” (fazendo uma alegoria à transformação de Pinóquio em burro), sem possibilidades de escolha e à mercê da maldade e aproveitamento dos outros. Ou seja, Pinóquio só conseguiu o seu perdão pela utilidade do trabalho e, depois, pela submissão da escola. Mas também podemos dizer que só conseguiu ter a maturidade suficiente para entender a importância da escola depois de ter reivindicado para si algumas brincadeiras e vivências que algumas crianças já poderiam ter vivido, possivelmente, menos ele.

Mas o que Pinóquio pergunta é só isto, no fundo, “onde posso brincar em paz?” Ou então, “onde é que me enquadro aqui, num lugar onde se me divirto ou descanso estou logo em perigo, ou sou catalogado como preguiçoso e menos inteligente? Onde me posso formar e crescer?”

Isto leva-nos ao tempo que delegamos ao ócio e à forma como este, socialmente, sempre foi encarado. A sociedade de Pinóquio era uma sociedade dura, que engolia os mais frágeis e, por isso, o duro trabalho ou estudo sem qualquer desvio não poderiam ser postos em causa, porque isso significaria perder o nosso lugar na hierarquia das coisas e deixar que terceiros nos espezinhassem. Não existiriam, portanto, pontos intermédios, ou se é desta forma ou o seu contrário. O mundo adulto assim era considerado segundo a sua função social, e a única função social das crianças, caso não trabalhassem, era a subjugação ao mundo adulto, sem possibilidade de nenhuma voz.

No que diz respeito à sociedade contemporânea, o conceito de criança evoluiu e, hoje, esta tem direitos, a própria escola também evoluiu e entendemos o brincar como algo fundamental e pedagógico para a nossa formação. O trabalho infantil trata-se de uma ilegalidade e uma criança, mesmo se tirar más notas ou for mais desatenta, não tem de gerar fonte de lucro para a sociedade nem tem de ter a seu cargo a responsabilidade do auxílio da família. Pode-se dizer, pelo menos, que estamos numa sociedade com um melhor entendimento destes conceitos. Mas socialmente, será que ainda não haverá o estigma de se considerar que a vida começa, apenas, quando se consegue o primeiro emprego, ou que alguém só é uma pessoa de direito a partir do momento em que trabalha?

Muito mudou e o conceito de trabalho também. Temos ainda uma parte terceiro-mundista do globo que, como Zizek explica, ainda explora segundo os conceitos laborais colectivos da revolução industrial e do séc XIX de Pinóquio, em contraste com a velocidade constante da sociedade actual dos países mais desenvolvidos em que, de forma individualista, o ser humano se explora e escraviza a si próprio, como nos diz a “Sociedade do Cansaço” de Byung Chul Han. A forma que o ser humano tem de ser utilitário é pelo excesso da sua positividade, ou seja, mesmo que de forma mais individual, este é levado a suportar ao máximo a velocidade actual, estando sempre ligado e sempre disposto à produção, mesmo que já não seja numa perspectiva fabril do séc. XXI, suprimindo ao máximo qualquer sinal de queixa ou mal-estar psíquico ou de tristeza. Segundo o filósofo sul-coreano, a velocidade da sociedade actual conduz a uma série de doenças neuronais “como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB)”, tal como explica no seu livro. Pelo que explica, estas doenças “determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade. Assim, eles escapam a qualquer técnica imunológica, que tem a função de afastar a negatividade daquilo que é estranho”, expõe.

No fundo, mesmo de uma forma diferente, ainda vivemos num mundo em crise que exige mais de nós e que continua a dividir as pessoas entre vencedores e falhados, e quem não consegue suportar essa pressão “é um fraco”. As crises globais apenas conduziram a formas mais individualistas do ser humano encarar o trabalho, mas ainda assim, sem deixar de encarar o espaço público sob um ponto de vista utilitário. Basta pensar que as “redes de contacto” passaram a estar na ordem do dia. Os jovens continuam a ser os mais afectados por esta pressão, uma vez que continua a não haver espaço para um jovem poder entrar convenientemente na vida adulta. As sucessivas crises e a mudança do mercado de trabalho, além de fomentarem ainda mais o individualismo, acicatam a competitividade e uma ansiedade atroz por, cada vez mais, um trabalhador, que agora se chama colaborador, ser mais descartável. Mas esta ideia utilitária do ser humano, actualmente, não é servida, apenas, pelo trabalho puro tal como o concebíamos. Já não basta ao ser humano tornar um dado produto apetecível, tem ele próprio de ser uma marca apetecível, ou então o seu lado utilitário esvanece.

De cabeça cheia, a escaldar, só nos basta cantar como Caetano Veloso e fazer uma oração ao tempo a ver este se nos chega, ou então, na melhor das hipóteses, desejar o nosso reset e reprogramação, para aprendermos a, por uma única vez na vida, estar mesmo no presente, tal como o Pinóquio queria fazer. O problema é que com os horários excessivos de escolas, tempos livres cheios e pressão para se atingirem determinados resultados, podemos levar as crianças connosco neste automatismo. Terão estas tempo para se dedicarem ao nada? Há que ressalvar que um dos problemas dos pais continua a ser este: como manter as crianças em segurança depois da escola? O que que fazer com elas?” Ocupar o horário com mais actividades pode ser uma solução. Sim, esse é também um problema contemporâneo, mas relembro uma notícia do dia 3 de Março que explica que as “vantagens de viver em cidades para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes diminuíram no século XXI”. O mesmo artigo diz que “a questão não é tanto se as crianças vivem em cidades ou áreas urbanas, mas onde vivem os pobres e se os governos estão a enfrentar as crescentes desigualdades com o desenvolvimento de iniciativas como complemento monetário adicional e programas de alimentação escolar gratuita”. Ou seja, esta sociedade do cansaço continua a ser uma sociedade em crise, e uma sociedade que continua a não saber acolher os mais jovens. Na prática, o problema é que esta sociedade individualista e dos homens excessivamente positivos de Buying Chul Han , que nos pede sempre mais e nos conduz à depressão, é também uma sociedade de precariedade que nos faz auto consumir e flagelar cada vez mais.

Sociedades em crise tornam-se mais susceptíveis à auto-exploração, e onde há essa auto-exploração menos tempo há para pensar, indivíduos que menos pensam menos sabem o que querem para si e, quanto menos sabem o que querem para si, mais utilitários se tornam. Mas as grandes questões são estas: estará a sociedade preparada para o que não é útil? Estará a sociedade preparada para os que nascem como poesia?

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