“Plastic Anniversary”, de Matmos: perturbantes presságios sonoros

por Miguel de Almeida Santos,    8 Abril, 2019
“Plastic Anniversary”, de Matmos: perturbantes presságios sonoros
Capa do álbum
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Algures no norte do oceano Pacífico, flutua uma ilha de lixo com três vezes o tamanho de França. A maior parte é plástico, esse conjunto de polímeros maravilhosos com mil e um usos, mas quase sempre o mesmo final, descartados facilmente depois de um curto tempo na nossa vida. Corja do planeta e da humanidade sem a qual não vivemos, o plástico e seus derivados têm variadíssimas utilizações, incluindo ser usado para fazer música e construir um álbum só com sons de objectos de plástico. É a isso que Matmos se propõem com Plastic Anniversary, o novo álbum do duo de música electrónica experimental composto por M.C. Schmidt e Drew Daniel, projecto que celebra também os 25 anos da relação do casal.

Esta abordagem conceptual não surpreende, vinda de um grupo estandarte da música electrónica experimental que, ao longo da sua carreira, sempre procurou a singularidade, contando na sua discografia com um álbum criado maioritariamente a partir de sons de procedimentos médicos, ou o álbum anterior, Ultimate Care, criado a partir de sons produzidos por uma máquina de lavar roupa. Seja qual for o conceito ou a ausência dele, Matmos mostram música visceral, muito ritmada e por vezes temerosa, e Plastic Anniversary é mais uma adição a esse catálogo eclético de álbuns. Mas ao contrário de Ultimate Care, este novo trabalho é mais preciso, afiado e com mais propósito, mostrando metáforas sonoras bem construídas.

Fotografia: Theo Anthony

No álbum, o duo quis explorar a relação do ser humano com o plástico e como as suas qualidades mais vantajosas – a sua durabilidade, portabilidade e longevidade – são também as piores para o meio ambiente. Isso é evidente na faixa título: a música é uma celebração, com os seus sopros imponentes e ritmo marchado, mas há alguma reticência pelo meio. É reconfortante e preocupante ao mesmo tempo, encapsulando bem a dicotomia da questão que abordam. No final da canção, ouvimos um assobio soar ao mesmo tempo que uma chuva de plástico, símbolo do ser humano perdido na infinidade polimérica. No espectro oposto, temos a berrante “Thermoplastic Riot Shield”, que não tem medo de ser literal e que, ao som de um alarme, destila todos os perigos num tema abrasivo e assustador, selvagem, mas completamente artificial.

Apesar de toda a miríade de sons que vamos ouvindo – bem introduzidos pela cacofonia entusiasmante e epiléptica do jocoso primeiro tema “Breaking Bread” – a música deste álbum tem vários momentos que se estendem além da audição e em direcção à ponderação. Se nos focarmos no conceito que Matmos adoptaram, o álbum revela-se uma metáfora para esse manifesto, não só a nível sonoro, mas sem nunca esquecer essa componente, como no caso de “Collapse of the Fourth Kingdom”. O título alude a passagens bíblicas de fim do mundo, enquanto que a música soa a uma festa apocalíptica completamente descontrolada, um caos tribal de linhas de sopro perturbadoras e percussão efusiva que podia ser a banda sonora deste problema com que nos deparamos.

No entanto,, para uma grande parte das pessoas, a calamidade que se abate sobre nós não é algo palpável, exacto, certo. É uma ameaça longínqua, tornada próxima pelo custo dos sacos nos supermercados ou a guerra contra as palhinhas de plástico. É com isso em mente que Matmos constroem músicas como “Silicone Gel Implant”, sedutora e maníaca, ou a vilanesca “Fanfare for Polyethyle Waste Containers”, de sopros ditadores que não deixam nada escapar ao seu alcance, ou a contida “Interior with Billiard Balls & Synthetic Fat”. Nunca deixamos de ouvir as bolas de bilhar neste tema, mas há uma ameaça simbólica inerente também ao som do teclado que se ouve. A música nunca se torna explicitamente assombrosa, mas planta a semente dessa ideia na mente do ouvinte, que desconfortavelmente experiencia o arranhar, o roçar e o crepitar de sons que vão surgindo.

Há muita coisa a acontecer em Plastic Anniversary. Mas isso é algo a que Matmos já nos habituaram. Não fazem música para o mundo, mas certamente que o seu alcance sonoro será sentido durante largos anos na história desta nobre arte. Com cada novo álbum reinventam-se, procurando abraçar novos conceitos e estabelecer novas fronteiras para a sua música e para a música de forma geral. Neste projecto, abraçam casualmente um mal parcialmente invisível, um milagre indispensável composto por objectos de fácil dispensa. A grande ilha de plástico continua à deriva pelo Pacífico e os sons de Plastic Anniversary são a sua banda sonora profética.

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