Pode a arte contemporânea salvar 2000 sobreiros?
Durante a segunda guerra mundial vastas áreas de floresta ficaram devastadas. O mesmo aconteceu a parques florestais junto de zonas urbanas e espaços verdes. A Alemanha, no centro do conflito e conhecida por ter uma grande área urbana florestada, não foi excepção. No final da guerra os residentes de algumas cidades viam assim árvores caídas, madeira queimada e até crateras no seu lugar. Os espaços de sombra e de refúgio habitualmente conhecidos tinham também eles desaparecido. Ao longo dos anos empreenderam-se esforços para recuperar parte destes espaços, embora a prioridade estivesse na rápida reconstrução das cidades.
Joseph Beuys, artista, activista e um dos fundadores dos Verdes da Alemanha, tinha passado por este processo e em 1982 acreditava poder fazer algo mais. O artista iniciava assim uma obra seminal, um dos seus trabalhos mais conhecidos, 7000 Carvalhos (7000 Eichen). Este consistia em plantar 7000 carvalhos na cidade de Kassel, desarvorada pela guerra, que vivia a reconstrução à base da modernidade do betão que imperava na época, estrangulando o espaço para as árvores. Beuys largou 7000 pilares de basalto em frente ao museu Fridericianum, com uma sensação de entulho pós-guerra, bem sentida para quem a vivia ainda como memória recente, e o que levou a que inicialmente a obra não fosse muito bem recebida. Mas esta acção traduzia-se num desafio. Por cada árvore que se plantasse seria retirada uma pedra dos “escombros” e colocada ao seu lado. As 7000 árvores foram plantadas ao longo de cinco anos, contando com a motivação da sociedade.
Hoje todas as suas heranças são muito apreciadas, tendo o seu trabalho conduzido à criação de vários espaços verdes e tornando a sua acção quase invisível, porque como disse, lembrado pelo seu aluno Pieter Heijnen, a “plantação destas 7 000 árvores tem tudo que ver com escultura. É a ausência de originalidade. Após a árvore se ter estabelecido, é apenas natureza.” A implementação da obra terminou em 1987, um ano depois da morte do artista.
Depois de si e sob sua inspiração alguns se seguiram. A dupla Heather Ackroyd and Dan Harvey desenvolveu trabalho com esta orientação, expondo em sua homenagem na Tate Modern e vendo a sua importância reconhecida. Também por aqui tivemos demonstrações herdeiras do trabalho de Beuys, sendo de lembrar a recente programação da BOCA do ano passado.
Mas há algo inquietante que nos separa de Kassel, 1982. Sem dúvida que a nossa distância do pós-guerra é um inegável diferenciador positivo. Já o mesmo não se pode dizer dos mais de 40 anos passados em que avançámos rumo à catástrofe ecológica, aparentemente silenciosa e invisível.
Beuys plantava árvores num tempo em que estas tinham sido dizimadas em muitas áreas, sofrendo o mesmo que monumentos, casas, escolas, hospitais, campos de cultivo e tudo o mais. Era também necessário repô-las e repensar que cidade se queria.
Hoje, sem motivos dessa dimensão para o desaparecimento de árvores, à excepção dos incêndios que ano após ano devastam o território, continuamos a encontrar-nos perante o grande perigo do abate. Joseph Beuys queria plantar árvores de forma simbólica onde estas já não existiam. Nós queremos abater árvores que são símbolo nacional. Dá-se desta forma prioridade ao muito nobre valor da “imprescindível utilidade pública”, só que esta é agora a transição energética a todo o custo e que eleva as ideias de algumas empresas privadas a desígnio de grande importância nacional. Assim, manda-se abater desta vez quase 2000 sobreiros, árvore protegida e símbolo de Portugal. Desde 2011 já lá vão 35 000 abates com o mesmo destino, por “imprescindível utilidade pública”.
Mas voltando a Beuys e à sua radical plantação, que acredito lhe parecesse incorrer neste tipo de utilidade. Está presente no seu trabalho a compreensão de que a arte tem um poder elevatório de algumas questões. Foi sem dúvida um golpe astuto a sua percepção de que elevando cada árvore a uma obra de arte estas estariam mais protegidas. Porque Joseph Beuys sabia que o seu gesto nunca faria delas “só natureza”, o seu contexto numa obra artística transformava-as também em obras de arte, marcadas pelas pedras de basalto. Assim, aquelas árvores estariam protegidas, mais do que se fossem simplesmente natureza. E assim permanecem.
7000 carvalhos não iam salvar a Alemanha e colocá-la na senda de um equilíbrio ecológico. Quase 2000 sobreiros não vão salvar Portugal do desencontro com o seu. Mas o simbolismo que carregam talvez.
O reconhecimento da natureza pela arte, impulsionando o lugar que ocupa no nosso espaço social, pode talvez ser o caminho. Não destruímos monumentos, artefactos, obras de arte. É um código moral subjacente que aceitamos sem questionar. Seria ele válido para árvores?
Se aprendemos com Beuys e se respeitamos o seu trabalho a ponto de financiarmos execuções herdeiras desta sua obra, devemos reinventá-lo? Mais de 40 anos passados, parece ser hoje com facilidade que se sugere plantação como compensação pelo abate. Como resposta talvez não seja radical plantar 7000 árvores. Talvez radical seja não cortar 2000.