Política, identidade e morte com “A senhora de Dubuque” em estreia no Teatro da Trindade
Questões políticas, de identidade e como lidar com a iminência da morte são o pano de fundo da peça “A senhora de Dubuque”, de Edward Albee, estreia absoluta em Portugal, na quinta-feira, no Teatro da Trindade, em Lisboa.
Uma peça de carácter psicológico, “com camadas sobre camadas”, “típica” do dramaturgo norte-americano” (1928-2016) que “põe em cena as crises do homem e da sociedade atual”, consideoru o encenador Álvaro Correia em declarações à imprensa, no final de um ensaio da peça, que também interpreta.
À semelhança de outros textos de Albee que já encenou, Álvaro Correia sublinhou o lado de “tragicomédia” característico da obra do autor, que “coloca sempre dentro da normalidade situações, de certa forma, limite”.
A iminência da morte de Jo (Manuela Couto), com a qual o marido, Sam (Fernando Luís), não consegue lidar, é o tema central da peça, cuja ação decorre na casa do casal e se desenvolve em torno de uma festa com mais dois casais com todos a jogarem às 20 questões.
Fred (Renato Godinho), Carol (Benedita Pereira), Edgar (Álvaro Correia) e Lucinda (Sandra Faleiro) são os outros dois casais a que, mais tarde, se junta outro: Oscar (Alberto Magassela), um negro elegante e magro, como ALbee menciona no texto original, e uma “espécie de diabo”, nas palavras do encenador, e a sua amiga Elizabeth, a senhora de Dubuque (Cucha Carvalheiro).
Iniciada no final dos anos 1960, dada como acabada no final da década seguinte e estreada em 1980, várias falas da peça remetem para o contexto socio-político norte-americano da época, com menção direta ao presidente norte-americano do Partido Republicano Richard Nixon, ao caso “Watergate” que o obrigou a renuncar ao mandato, no início de agosto de 1974, e à guerra do Vietname.
Numa sala de estar, a reunião dos três casais decorre assim sob tensão. À medida que vão bebendo, vão-se insultando, deixando a nu animosidades.
A obra faz uma “caracterização (e crítica) da alta burguesia americana”, mas que “podia ser de outra qualquer”, já que, “à conta do álcool [as personagens] se insultam, mas estão lá na mesma”, observou o encebador.
Com personagens masculinas mais frágeis do que as femininas, é no segundo ato, com a chegada de Elizabeth e seu amigo Oscar, que as tensões atingem o auge, evidenciando o lado destrutivo, ao mesmo tempo que vêm ao de cima temas que, para Álvaro Correia, continuam atuais: a “racialidade”, a “fraca qualidade” dos políticos atuais, quer nos Estados Unidos quer na Europa, ou a ascensão da extrema-direita nalguns países.
“O que acontece no segundo ato é, para mim, o grande desafio. Como é que podemos tornar credível uma situação que está no limite do credível”, explicou, a propósito da peça que definiu como “muito metafísica” e que especialistas chegaram a considerar “uma das peças malditas” do dramaturgo.
Por abordar questões relacionadas com a identidade dos EUA (tio Sam) num jogo implícito com o nome de uma personagem que, ao longo da peça, parece sempre não saber quem é, justificando a sua existência em função dos outros: “Sou o marido da Jo e o dono desta casa”, diz Sam, quando questionado sobre que é. Ou quando a morte da mulher se aproxima cada vez mais e ele lhe diz que sem ela “não existe”.
Para Álvaro Correia, existe “uma espécie de perda de identidade (…) em substrato na peça toda”, que é uma espécie de espelho do que é “América ou o que são os valores democráticos do Ocidente”, que “tanto tentamos impingir a toda a gente, mas que estamos a ver dentro daquilo que é o nosso enquadramento, quer europeu quer americano, que estão a ser postos em causa cada vez mais”.
A título de exemplo, cita o ressurgimento de Donald Trump e as próximas eleições legislativas em Portugal, “tão polarizadas, como nunca tivemos” e, ao mesmo tempo, “tão indefinidas do que pode vir a acontecer”.
Em tempos, pensou-se “que pior não seria possível e hoje vemos que é”.
Para Álvaro Correia, a riqueza dos textos de Edward Albee reside não apenas nas questões políticas que aborda, como nas que aqui se levantam: “Quem sou, como me exerço e depois também a questão da morte, como nós lidamos com a morte”, um tema com que “a nossa sociedade não sabe lidar”.
Uma das novidades neste texto do Albee, na altura, reside no facto de, com frequência, as personagens interpelarem os espectadores, não para que estes decidam o que quer que seja, mas para que sejam “coenvolvidos” na ação, “criarem uma cumplicidade, quase como se fossem uma nona personagem”.
Ajudar Jo a morrer, a fazer “essa passagem” e, sobretudo, confrontar Sam com aquilo que é a morte e aquilo que são os direitos, é o propósito de Elizabeth, a senhora de Dubuque, nome de uma cidade norte-americana na fronteira entre três estados, uma personagem que, nas palavras de Álvaro Correia, remete para a deusa grega Hécate, tal como Oscar remete para Hades, denunciando a importância que a tragédia grega assume na escrita do autor de “Zoo story”.
“A senhora de Dubuque” é uma coprodução do Teatro da Trindade INATEL com a Cultuproject, vai estar em cena até 21 de abril, na sala Carmen Dolores, com récitas de quarta-feira a sábado, às 21:00, e, ao domingo, às 16:30.
Com tradução de João Paulo Esteves da Silva, o espectáculo tem cenografia de Nuno Carinhas e desenho de luz de Manuel Abrantes. Na assistência de encenação está Bruno Soares Nogueira.
Na véspera da estreia, haverá um ensaio solidário, com a receita da bilheteira a reverter, na totalidade, para a instituição Mansarda. No dia 17 de março, no final da sessão, haverá um conversa com o público.