Politicamente (in)correto
Todos queremos ser um bocadinho politicamente incorretos, na medida em que queremos que a sociedade mude. Na condição de seres inconformistas, estamos sempre à procura de espaço para a evolução e o desenvolvimento das instâncias sociais, políticas, culturais, científicas, e muitas mais. Para isso, é necessário ser-se incómodo. A novidade é assim, traz em si algo de novo, algo que vem perturbar e mexer com o status quo das coisas. A partir do momento em que elas entranham, tudo bem. Até lá, é um suplício, onde a discussão moral sobre a sua oportunidade emerge.
A História trata de não desmentir isto. Aqueles que defenderam as causas sociais nos séculos passados traziam ideias vanguardistas, totalmente opostas àquilo que era, então, o “politicamente correto”. Aquilo que estava decidido pela surda-muda moralidade não podia ser afligido, posto em causa, colocado em equação. Na ciência, caíram setas inflamadas sobre as ideias de Isaac Newton e de Galileu Galilei. Na música, muitos criticaram a postura andrajosa e despreocupada de Jim Morrison, Kurt Cobain, Janis Joplin, e até dos próprios Beatles. Rostos consagrados nos dias de hoje caminharam sobre pedras, num trilho acidentado e armadilhado pelas opiniões mais contrastantes e opostas aos ideais e valores defendidos por eles. Por mais que processassem a liberdade da sua expressão, ainda mora neles uma certa vontade de ver aquilo que não está nos seus conformes a ser omitido ou negado. Quem nunca sentiu isto perante a oposição dos seus valores? No entanto, tudo pretendiam menos lesar aqueles que compreendiam a sociedade. Queriam, na verdade, mudar, apresentando-se como aptos para derrubar uma série de hierarquias predefinidas e rotuladas desde há muito tempo, e por pessoas que já nem se encontravam por lá. A idolatria não se encontra só do lado do “politicamente incorreto”, mas, e essencialmente, está na calha da chama daqueles que dispensam processar essa tentativa de mudança.
Engraçado e irónico como a crítica se reverte sempre para aquele que mais tenta apontar o dedo, por grosseria ou pelo desplante de defender e de fazer isto ou aquilo. José Saramago não seria, nos dias de hoje, um dos autores mais acarinhados pela nação que o viu nascer se não fosse disruptivo, se não causasse sensação e celeuma naqueles que tão bem conheciam a sociedade. Para aqueles que pouco o viram mas muito o leram, sentiam que se tratava de um rosto despreocupado com ladainhas ou pergaminhos morais. Não se coibia a desmascarar aquilo que achava, principalmente sobre as liturgias e as convenções católicas e cristãs. Pouca vivalma não se sentiu afetado com isto. No entanto, engoliram em seco e apresentaram-no como um dos mais notórios autores de língua portuguesa. O Nobel não os deixava expressar uma opinião oposta a essa. Eis que o “politicamente incorreto” saltou, de súbito e de subtil forma, para um novo “politicamente correto”.
E andamos nisto. Quando chega um novo “politicamente incorreto”, salta a barafunda e estala toda a dissensão sobre aquilo que este expressa e faz. A sociedade é o mais perfeito paralelismo daquilo que somos como indivíduos. Custa-nos a mudança, custa-nos saltar da nossa zona de conforto para integrar e tolerar o diferente. Também isto é pretexto para que muita gente se ancore no evidente “politicamente correto”, por mais que a verdade tenha deixado de habitar lá. São padrões e convenções que permanecem como ideais sagrados, aqueles que tantos criticam no auge do seu ateísmo. Se não houvesse, também, “politicamente incorreto” na política, poucos seriam aqueles que poderiam pôr em causa as fragilidades do capitalismo, o mesmo que coloca em causa a qualidade de vida de tantos países em subdesenvolvimento, mas que não cessariam em refutar toda a argumentação teórica comunista. Não se discute aquilo que foi a sua aplicação prática – porque qualquer tipo de crimes, mal lese o próximo, ultrapassa qualquer tipo de adverbiação “politicamente” – mas sim aquilo que é a negação do estudo e de novas abordagens sobre os postulados dos seus teóricos.
É interessante analisar as antíteses que o nosso pensamento tem. Uma delas incide precisamente nisto de querermos que a mudança ocorra, porque assumimos que algo está mal, mas de não a encararmos e de a discutirmos como parte integrante de uma alteração do tal status quo. São fronteiras ténues que, ao mínimo pisoteio fora do assegurado pelas doutrinas quotidianas, geram mais polémica do que os verdadeiros problemas que o dia-a-dia traz. São tantas as iniquidades, as desigualdades, as imparidades, e as eventualidades que induzem a essa mudança. Por mais que sejam levantadas em debates ou dissecações académicas e corriqueiras, sobra-nos a atenção para conceder algumas energias diretamente para o julgamento, para o dedo apontado àquele que se atreve em contrariar as etiquetas das roupas descuidadas.
O “politicamente correto” acaba por ser uma base mínima onde o comportamento e a consciência coletiva assentam, mas que muitos vêm criticando. No entanto, é igual a proporção daqueles que preparam as setas para arremessar aos que trazem o novo. Incomoda porque, para a sua moralidade, posiciona-se no tal “politicamente incorreto”. Por mais que se defenda alguém que assuma esta posição, o choque não se esconde. São piores dos que os das galinhas os impactos que estes chocares proporcionam. As conveniências permanecem enraizadas como algo sacrossanto, como algo impensável de ser questionado e abalado. Porque qualquer voz dissonante é logo abafada por um ressoar de críticas uníssonas, por mais patente e evidente que seja a problemática despertada. Porque, no fim, o que interessa não é a resolução do problema, mas a preservação do “politicamente correto”. É nesta dinâmica de contenção que a sociedade se contrai e se sente intimidada, impelida a conter-se no seu percurso evolutivo. É assim que a incorreção surge como argumento de invasão, de insurreição, de disrupção, perante uma correção de regressão.