Por que razão a escola, tal como a conhecemos, já não serve e é desigual?

por Ana Monteiro Fernandes,    19 Julho, 2019
Por que razão a escola, tal como a conhecemos, já não serve e é desigual?
Marta Saraiva (@annehail) / CCA
PUB

Numa entrevista dada em conjunto, salvo erro no ano passado, as autoras da série Uma Aventura acabaram por dizer algo que, no fundo, já não é segredo para ninguém, “a escola está pensada para os alunos inteligentes”. [Aqui, atenção, não entra em jogo o desempenho da Isabel Alçada como ministra, apenas uma reflexão sobre o que foi dito]. Eu acrescento, o sistema escolar tal como o conhecemos está pensado para os alunos que podem ser inteligentes, ou seja, para os que mais facilmente conseguem reunir as condições familiares e toda uma estrutura propícia e pensada para um maior sucesso e desenvolvimento cognitivo.

É verdade que a sociedade mudou, já não temos em mãos o problema da iliteracia pré 25 de Abril. O acesso ao ensino superior já não é restrito a uma supra-elite, ainda bem. Mas a massificação do ensino, principalmente a do público (sem o qual eu não poderia ter estudado) que foi óptima, não invalida que essa mesma massificação possa ser pensada e debatida, principalmente quando os indicadores nos apontam que a escola já não funciona como uma alavanca social e há sérias questões que necessitam de ser resolvidas. Relembro, por exemplo, a notícia/estudo recente sobre a forma como as desigualdades sociais ainda interferem na escolha do curso superior.

Mas o que importa reter é que o erro é pensar-se que, garantidamente, todos os alunos têm, não só, as mesmas condições de base como a mesma forma de corresponder positivamente a um método de ensino, e aí reside o principal problema. Nem todos os alunos vão bonitinhos para as salas de aula, nem todos correspondem ao mesmo modo de ensinar, nem todos vêm de famílias perfeitas, nem todos são donos dos mesmos recursos nem o desenvolvimento é, garantidamente, linear. Está sujeito a reveses e é isso mesmo que um sistema de ensino democrático e capaz, direcionado para o futuro, tem de aprender. Mais do que com a matemática, o inglês, o português ou a história, a escola lida com o desenvolvimento humano no seu todo. Como sabemos, as palavras “desenvolvimento” e “humano” são tudo menos sistemas fechados como a matéria das disciplinas em si. Por isso mesmo, falar-se de ensino não é só falar-se do melhor método de colocar os verbos franceses ou a tabela periódica na cabeça, é falar-se de pedagogia e orientação, acima de tudo, e essa é, a meu ver, a grande questão.

Confesso que me custa ouvir quando ouço alguém dizer, “ah, mas a educação é em casa que se dá. Isso faz toda a diferença.”. Claro que faz. É sempre importante receber-se boa educação em casa, a nível de valores, assim como uma boa estimulação intelectual. Ninguém põe isso em causa. O problema é quando utilizamos essa mesma asserção como uma forma de destituir a escola de algo que também faz parte da sua missão, educar-nos como seres humanos. Essa frase, muitas vezes dita, seria justa se, lá está, todos nos regêssemos pela mesma bitola, mas feliz ou infelizmente ― depende do contexto e perspectiva ― não é assim. Se algo falha com um adolescente ou criança, ou se esta não corresponde como devido, não devia a escola ― o local onde passa mais tempo, por vezes mais do que em casa ― ter mecanismos suficientes para poder intervir e ir ao fundo da questão? No fundo, se a família falha a algum nível e diz que a responsabilidade é somente da escola e, por outro lado, a escola diz que a responsabilidade é somente da família, temos aqui um grave problema. Dessa forma há alunos que, por não corresponderem ao nível comportamental e ao nível cognitivo que é esperado (e aqui ainda não chegamos ao ensino especial, outro assunto à parte) se transformam em eternos joguetes entre escola e casa quando, a única coisa que falta, é uma boa orientação. Em suma, alguém que se interesse.

Aqui chegamos, finalmente, a dois grandes problemas. O primeiro corresponde a uma classe de professores descontente e saturada que, também, não tem a preparação universitária suficiente, específica e necessária para lidar com os casos mais desafiantes. É neste aspecto que a especialidade de pedagogo é necessária nas escolas e é, precisamente, isso que não temos. A própria profissão, em si, já está a entrar em crise uma vez que, num futuro muito próximo, Portugal vai ter uma horrível escassez de professores sem precedentes. Uma das razões para tal também tem a ver com desinvestimento dos cursos cuja saída profissional é, essencialmente, a docência, tal como aconteceu com os cursos de humanidades. O segundo grande problema prende-se com uma rede de psicólogos a actuar nas nossas escolas ainda incipiente e com falta de estratégias realizadas em conjunto com os professores. Para resolver a questão, anunciou-se, em Março, o reforço dessa rede com mais 100 psicólogos no ensino em 2020. Ainda é muito pouco e falta perceber se haveria alguma estratégia de actuação para efectuarem um bom e real trabalho em conjunto com os docentes. Algo que beneficiasse todo o ambiente escolar.

A verdade é que uma estrutura de ensino pensada e assente à luz da revolução industrial já não serve. A noção de que um grupo de crianças tem de ficar sentado, quase todo o dia, a ouvir um ou mais professores só a debitar matéria é, não só exasperante, mas também castradora. Se juntarmos a isso as inúmeras actividades extracurriculares a que as crianças e jovens estão sujeitos hoje em dia, quase não sobra tempo para respirarem. Se fizer o exercício de me lembrar dos meus anos do liceu, o que ficou foi isto, “os exames nacionais, temos de pensar nos exames nacionais”; “vamos antes dar mais atenção a esta matéria, porque é o que deve sair nos exames nacionais este ano”, “não há tempo para darmos Os Maias, vamos antes dar A Relíquia porque estamos atrasados no programa.” Haverá tempo para estes professores, já com os cabelos em pé e sempre numa correria com a matéria, apostarem, antes, no gosto de aprender apenas pelo mero gosto de aprender sem se pensar em rankings, tabelas ou no que poderá sair nos exames? Haverá tempo para os jovens aguçarem a sua curiosidade e, com isso, a sua autonomia de pensamento e irem mais além nas suas pesquisas, sem a preocupação de se apostar ou não na matéria certa para uma ficha de avaliação? Ou sem a preocupação de se saber se aquela cruzinha corresponde àquele determinado quadradinho? Haverá admiração se for mais útil, assim, para o estudante comprar e ler antes um resumo de apoio de uma obra, ao invés de se ler a própria obra? Ou que os alunos saiam do 12.º e não tenham, por exemplo, uma ideia do que se passa na sua própria contemporaneidade e com graves lacunas? Ou, até, mais grave, sem uma noção daquilo que é a sua verdadeira e real vocação?

Ao invés deste estilo de ensino, que coloca a obrigação da matéria que tem de ser dada a um ritmo alucinante em primeiro lugar (quem não apanhou o ritmo que o apanhasse), devíamos pensar, antes, num método que valorizasse as reais capacidades individuais do aluno e estimulasse a sua  autonomia de pensamento. Que olhasse, também, para as suas dificuldades individuais e se interessasse em procurar o melhor método para as resolver. Tendo isso mesmo em conta, vamos imaginar um aluno com dificuldades numa determinada matéria, numa sala de aula. Esse aluno, se já tem dificuldades acrescidas, numa poderá compreender a matéria se esta lhe for explicada da mesma maneira, com o mesmo tipo de linguagem, uma e outra vez, impossibilitando, dessa forma, a sua evolução. É como começar uma casa pelo telhado, pelo final, ao contrário. É preciso ir buscar as bases lá atrás.

Se há coisa que a psiquiatra Nise da Silveira nos ensinou é que há um número infinito de linguagens que coexistem e têm a mesma importância entre si. Por que razão impossibilitamos, então, o aluno de procurar e encontrar a sua? A que mais lhe diz e é mais indicada? O acto de ensinar é, acima de tudo, um acto de comunicação, isto é, de passar a mensagem e torná-la perceptível através de signos e seus significados. É, na sua essência, um processo de linguagem verbal e não verbal, oral e pictórico, que pode partir da orientação do professor mas que tem de ser completo com a contribuição do aluno. Ou seja, o estudante também tem de sentir que faz parte daquele processo e, daí, tem de lhe ser permitido que coloque lá um pouco de si mesmo. Se o método de ensinar não resulta, então é porque há algo nessa base que está a falhar. Para se desenvolver, o ser humano tem de construir, manipular e reflectir sobre os significados e  sua consequente simbologia para entender o mundo que o rodeia ― a escola tem de permitir essa mesma construção, gradualmente, tal como uma escadaria que se vai construindo degrau a degrau. Ou seja, de que forma e até que ponto sou capaz de construir associações para conseguir compreender a realidade à minha volta?

Tudo isto faz sentido e é importante se recordarmos a inversão do cartesianismo segundo António Damásio ― a emoção e sentimento como elementos complementares e influentes do racionalismo. Ou seja, por este prisma, a concepção do ser humano como um todo. E, na verdade, se considerarmos que, afinal, no início não era o verbo, convém relembrar, mais uma vez, o que é a emoção e o sentimento. A emoção é o programa, o concerto de acções que se desenrola no nosso corpo. Por sua vez, o sentimento é a ‘experiência mental’ desse mesmo concerto de acções que se está a passar no nosso corpo. Por essa mesma razão, Damásio diz em ‘A Estranha Ordem das Coisas’ que a consciência requer imagens (necessárias para, num processo secundário, se desenvolver o sentimento) e coloca o ênfase na imagem no seu recente livro, assim como nas expressões artísticas. Daí eu própria relembrar, no início deste texto, a afirmação das autoras de ‘Uma Aventura’ ― a estrutura da escola tradicional está pensada, somente, para os alunos inteligentes, ou que podem ser inteligentes, uma vez que na correria do cumprimento do programa não há atenção às capacidades individuais nem às dificuldades específicas do aluno. Uma vez que o estruturalismo escolar só dá ênfase a um tipo de conhecimento mais racional numa fase mais avançada, sem prestar atenção a todos os outros aspectos já abordados e que também o complementam, é muito fácil que um aluno com dificuldades permaneça com essas mesmas dificuldades até ao final.

Quando foquei que, segundo Damásio, a consciência requer imagens, foi também para poder explicar como a arte, em si, ignorada no nosso sistema de ensino, pode ser essencial para o desenvolvimento das crianças e jovens, tanto a nível de inteligência emocional como formal. Aqui não falo das aulas da Educação Visual em que o aluno diz que não tem jeito se não fizer logo algo fantástico. Estou a falar em como simples rabiscos podem espoletar capacidades formais e, também, na necessidade de haver, primeiro, uma exploração livre dos materiais e da criatividade sem filtros: como isso, numa fase inicial, pode influenciar e estabelecer a ponte com uma técnica mais aprimorada, além de ser uma arma de autoconhecimento. Mas a imagem não se dá, apenas, através da sua representação do desenho. É essencial para a escrita livre, a música até. São, portanto, questões primordiais mas que continuam a ser descuradas, até porque quando o ensino é abordado nas escolas, nunca é sob a perspectiva de deixar a criatividade fluir livremente, explorar os materiais a fim de criarmos familiaridade e afinidade por eles, é sempre sob um estruturalismo técnico que começa a construir a casa pelo contrário.

A consciência de que o ensino tradicional precisa de ser mudado é real e já há tentativas nesse sentido. A European School Net tem em mãos com um projecto que conta com mais de 30 salas de aula do futuro espalhadas pelo país. Essas salas de aula não só têm uma estrutura diferente da habitual, como permite que os alunos possam desempenhar, ao mesmo tempo, actividades diferentes. Propicia-se a que o aluno não só tenha mais autonomia na investigação que pode fazer, como se inverte a relação habitual entre aluno e professor, em que o aluno está sentado só a ouvir e o professor a falar ao mesmo tempo para mais de 30 alunos que se espera estarem a fazer o mesmo. Em vez de uma relação hierarquizada desta forma, está-se a dar espaço para uma maior dialéctica entre aluno e professor, que assume, dessa forma, uma posição de orientador, e uma atenção mais individualizada às actividades dos alunos.

Com a rapidez e facilidade com que, hoje em dia, conseguimos aceder à informação, esse vai ser o maior desafio para quem ensina ― orientar, acima de tudo, principalmente numa altura em que a realidade virtual se imiscui na nossa vida real, com todos os seus prós e contras. Criar-se métodos para o aluno conhecer as suas reais capacidades e poder, livremente, desenvolver os seus próprios gostos. Até porque, num futuro que se prevê mais técnico, até por causa da inteligência artificial, a melhor resposta vai ser com o que há de mais subjectivo em nós, não o fetiche obsoleto de se querer ser tratado como doutor.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados