Por que razão acontecem coisas terríveis?
No imaginário coletivo, poucas são as vezes em que o crime não surge como fenómeno aberrante e impensável, necessariamente perverso, coisa que se abate sobre um mundo bem arrumado de homens normais, como se caído do alto. O crime é, assim, uma aparição na vida geometricamente ordenada, surgindo como espécie de revelação que nos confronta com um segredo mal guardado: o da nossa fragilidade e falibilidade. Ora, conviver com a ideia de que somos capazes de cometer crimes implica tocar num lugar vedado da natureza humana, deliberadamente mantido à distância. Como se compreende, preferimos integrar a grande ficção de que o outro, o criminoso, é diferente de nós, pessoas-de-bem, e com isso nos permitimos dizer “jamais faria aquilo”, daí retirando certo apaziguamento e consolação.
A fascinação pelo crime, a atração pelos seus detalhes sórdidos, a sua utilização como arma ideológica funda-se na dificuldade de nos vermos como o outro, daí que não nos repugne reivindicar dura punição. Não por acaso, a punição tem sido historicamente entendida como condição de salvação coletiva, num modelo de purificação sempre acompanhado pela exclusão física do outro, como Foucault bem explica quando compara a “exclusion of the lepers” à “inclusion of plague victims” (cfr. Michel Foucalt, “Les anormaux”, Ed. Seuil/Gallimard, 1999). Curioso é também notar como a salvação coletiva se apresenta incompatível com a salvação individual. Na tragédia de Eurípides, v.g., a salvação da cidade de Argos dependente da punição de Orestes, de nada valendo as razões apresentadas, ou os pedidos de clemência de Electra (em particular, “ode à piedade”), para impedir a decisão da assembleia que condena Orestes à morte por degolação às próprias mãos, sem nunca perguntar “por que razão o crime aconteceu”.
Angela Davis formula esta pergunta e vai mais longe: interpela-nos sobre o “complexo prisional-industrial”, provocando o leitor com o título “estão as prisões obsoletas?”. A obra da autora foi publicada em Portugal em 2022, embora se trate de um texto de 2003, e representa um dos mais importantes contributos académicos abolicionistas, questionando a eficácia de um sistema punitivo centrado na prisão e no castigo. Diz-nos, entre outras coisas, que a escola pode ser vista “como a mais poderosa alternativa às cadeias e prisões”. O texto é expediente para uma reflexão geral e profunda sobre o modelo de justiça penal e a finalidade das penas, que em Portugal encontra um enquadramento legal adequado e humanista. Mas a pergunta “por que razão acontecem coisas terríveis” deve ser colocada antes de qualquer outra. É surpreendente que coisas terríveis aconteçam em Portugal? Investimos o suficiente no combate real à pobreza e à exclusão social, em cuidados de saúde mental, em programas de reabilitação sérios, na desconstrução de comportamentos violentos, na prevenção efetiva de situações de perigo? Por que razão temos índices de corrupção de dimensões titânicas? Esperamos que um outro, pobre e sem soluções, seja exemplar? Esperamos que um outro, doente mental e sem apoios, seja exemplar? O que fazemos nas prisões para reeducar as pessoas? Um modelo de Direito Penal humanista e eficaz deve perguntar “por que razão esta coisa terrível aconteceu” e só depois trilhar caminho. Eis, porém, uma certeza: reivindicar a intervenção do Direito Penal para tudo e para nada não evita que coisas terríveis aconteçam.