Por uma “Comissão da Verdade e Reconciliação do Colonialismo Português”

por João Moreira da Silva,    6 Outubro, 2023
Por uma “Comissão da Verdade e Reconciliação do Colonialismo Português”
DR
“A verdadeira reconciliação expõe tudo: o horror, o abuso, a mágoa, a verdade. Às vezes, até pode piorar a situação. É uma ação arriscada mas que, no final, valerá a pena: só um confronto honesto com a realidade pode trazer uma verdadeira cura. Uma reconciliação superficial só pode trazer uma cura superficial.”
Desmond Tutu, coordenador da Comissão pela Verdade e Reconciliação da África do Sul, instaurada em 1995 após o fim do apartheid.

Os temas não são novos. O silenciamento das histórias de violência do colonialismo português. As dificuldades em lidar com o passado colonial do país. A perpetuação de narrativas lusotropicalistas na atualidade. O racismo estrutural da sociedade portuguesa. A negação da cidadania. Tudo se reconduz ao colonialismo mas todas as conversas sobre o colonialismo nos conduzem a portas fechadas: não podes reescrever a história; não existe racismo na sociedade portuguesa; para quê trazer essas conversas do passado que já ficou para trás? Está na altura de abrir estas portas todas de uma vez. De contar a Verdade sobre o colonialismo português. De dar um rumo e uma estrutura coerente às vozes, crescentes mas dispersas, que se insurgem na denúncia da colonialidade da nossa sociedade. De procurar a reconciliação pessoal de vítimas do colonialismo português e que, ainda vivas, presenciaram na própria pele os seus horrores. De honrar os que morreram em massacres, campanhas de “pacificação” e guerras pela sua independência. De confrontar os fantasmas da História que preservam o racismo e as desigualdades nos dias de hoje. Está na altura de criar a Comissão da Verdade e Reconciliação do Colonialismo Português.

Antes de criar uma Comissão da Verdade — um empreendimento complexo — é necessário responder a várias perguntas, começando pelos “básicos”. Primeiro, claro está, precisamos de compreender o que são as Comissões da Verdade e qual foi a importância que tiveram em países como a África do Sul, a Argentina e Timor-Leste. Vou responder a esta questão na primeira parte deste ensaio. Na segunda parte do texto, vou procurar respostas às perguntas mais complexas sobre esta Comissão numa conversa com Aurora Almada e Santos, historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade de Lisboa. Há pouco menos de um ano, Aurora Almada e Santos escrevia, no Gerador, um artigo intitulado Portugal e a limitada reflexão sobre o seu passado colonial, no qual realçou a importância de criar uma “comissão conjunta, entre Portugal e as antigas colónias, para o estudo dos diferentes massacres que ocorreram durante a dominação portuguesa.” Neste sentido, também Irene Flunser Pimentel, em 2017, Mustafah Dhada, em 2021 e Ângela Coutinho, já em 2023, apresentaram ideias semelhantes em artigos e conferências. Com o aproximar dos 50 anos do 25 de Abril e das independências africanas, este texto procura relançar uma discussão que já foi levantada por alguns historiadores no passado recente e responder a algumas questões centrais sobre o tema: em que moldes seria organizada uma Comissão da Verdade do colonialismo português? Quem é que seria incluído neste processo? Como é que se articularia a relação entre os diferentes países envolvidos — Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde — uma vez que as Comissões da Verdade são, por regra, estritamente nacionais? 

O que são as Comissões da Verdade e Reconciliação?

Não é fácil definir com precisão o que é uma Comissão da Verdade. Como escreve a investigadora Silvia Rodríguez Maeso, “As Comissões da Verdade são processos complexos e não devem ser consideradas como totalidades monolíticas”. No entanto, todas elas — já se contam mais de 35 Comissões desde os anos 70 — partilham uma base comum: são órgãos oficiais estabelecidos para investigar diferentes violações de direitos humanos, crimes de guerra, ou outros tipos de violência e abuso que se tenham desenrolado ao longo de vários anos. No livro Unspeakable Truths, uma análise extensiva de diferentes Comissões e dos seus resultados, Priscilla Hayner define os seus requisitos gerais: a Comissão deve focar-se no passado e não em eventos atuais; deve investigar um padrão de eventos que tomou lugar num determinado período de tempo; deve interagir diretamente com a população afetada, recolhendo informação das suas experiências; deve ser um órgão temporário, finalizado aquando da publicação do seu relatório final; e, por fim, é oficialmente autorizada pelo Estado (ou Estados) em questão. Partindo desta base comum, a Comissão passará aos aspetos específicos de cada contexto: no caso do colonialismo português, teremos de ter em conta que este não era igual em todos os territórios, muito pelo contrário – mas já lá vamos. Cumpridos estes requisitos, a Comissão pode começar a prosseguir o seu objetivo mais importante: estabelecer todos os factos (ou, por outras palavras, a verdade).

Assim, como explica Rodríguez Maeso, as Comissões da Verdade avançam com duas grandes operações para estabelecer todos os factos: a denúncia pública, que “fixa e legitima a condição de vítimas”, e a acusação, que revela “as ações e intenções dos perpetradores”.  Feitas estas operações — que normalmente duram anos e envolvem centenas de especialistas de diferentes áreas, que conduzirão entrevistas e analisarão uma panóplia de dados, novos e antigos — as Comissões apresentam um relatório no qual não só são elencados todos os factos sobre estas violações de direitos humanos, como são feitas recomendações aos Estados em questão. Apesar de estas recomendações não serem, por regra, legalmente vinculativas, têm um enorme potencial de mudança por várias razões: o poder simbólico de transformar a “memória coletiva” da sociedade, livre de antigos preconceitos e mitos que perpetuam desigualdades. 

Vejamos um exemplo prático desta transformação na memória coletiva nacional. Hoje, apesar de (quase) todos sabermos que milhares de homens e mulheres morreram às mãos do aparelho colonial português em massacres e guerras, muitos continuam a negá-lo através de narrativas que remontam ao tempo do Estado Novo — por exemplo, através do mito do “bom colonizador”. No entanto, uma Comissão oficial, que faria uma análise extensiva destas mortes, que falaria com familiares das vítimas, com homens e mulheres que foram obrigados a trabalhar e a servir os colonos brancos, que elabora um relatório completo de tudo o que aconteceu nas colónias, tem o potencial de “imprimir” uma narrativa diferente no imaginário nacional — por outras palavras, restringe as “mentiras permissíveis”. Hoje, é difícil encontrar alguém que negue as atrocidades do regime de apartheid racial na África do Sul — e isto deve-se, em grande parte, ao sucesso no estabelecimento dos factos da sua Comissão de Verdade e Reconciliação. As mentiras podem sempre existir, claro, mas o potencial para restringi-las, honrando e respeitando as vítimas, é imenso. 

Por outro lado, há uma série de mecanismos políticos que podem ser aliados à criação de uma Comissão da Verdade, reforçando as suas conclusões. Desde mecanismos simbólicos — como pedidos de desculpas oficiais e construção de monumentos que honram as vítimas do colonialismo — a políticas públicas — como a reformas de instituições que participaram em práticas abusivas, a revogação de leis que permitiram estes crimes, a reparação das vítimas, a devolução de artefactos e outros bens roubados durante este período, a criação de novas comissões de inquérito, a revisão de manuais escolares e outras fontes de propagação de mitos coloniais. Esta lista não é exaustiva: os mecanismos a adotar dependerão de uma série de fatores, desde a vontade dos Estados envolvidos às próprias conclusões da Comissão da Verdade. Ainda assim, é evidente que, num país que continua a erguer monumentos coloniais — vejamos a recente reinauguração dos brasões da Praça do Império, em Belém — e cujos altos líderes continuam a negar o racismo estrutural da sua sociedade, há muito trabalho (ou, por outras palavras, muita descolonização) a fazer.

“Como imaginar uma Comissão da Verdade e Reconciliação do colonialismo português?” — à conversa com Aurora Almada e Santos (ler entrevista completa)

Feitas as apresentações gerais do que é uma Comissão da Verdade, vamos a um caso concreto — como é que podemos imaginar a arquitetura de uma Comissão que visasse os crimes e abusos do império português? É evidente que este nunca poderá ser um processo exclusivamente nacional — terá sempre de ser feito em parceria com os países que foram colonizados por Portugal, uma vez que os massacres e a guerra ocorreram nos seus territórios e as vítimas são, na sua grande maioria, naturais destes países. Ou seja, implica um enorme esforço diplomático, ao qual se juntam as óbvias dificuldades em convencer o Governo português, tipicamente conservador em matérias relacionadas com os debates sobre o passado colonial, a patrocinar esta Comissão. 

Para compreender melhor como imaginar esta Comissão da Verdade em Portugal, conversei com Aurora Almada e Santos, uma das historiadoras mais interventivas sobre a importância de refletir sobre o passado colonial em Portugal, com inúmeras publicações escritas acerca da dimensão internacional da descolonização portuguesa. No seu artigo Portugal e a limitada reflexão sobre o seu passado colonial, publicado no Gerador há cerca de um ano, a historiadora propunha a criação de uma Comissão conjunta que incluiria Portugal e todos os países africanos que foram colonizados. Tal seria inédito na história das Comissões da Verdade por duas razões — por um lado, por ser uma Comissão internacional e não apenas nacional; por outro lado, por incidir sobre os crimes perpetuados por um império colonial. Nunca houve este tipo de reconhecimento e investigação por parte de um país colonizador, seja em parcerias internacionais ou por si próprio (em 2022, Macron anunciou a criação de uma “Comissão da Memória” franco-argelina sobre o colonialismo francês. Contudo, a Comissão ainda não anunciou quaisquer conclusões e tem sido alvo de fortes críticas). Tendo em conta este caráter inédito, cabe pensar na importância, no escopo e na estrutura desta Comissão.

Aurora Almada e Santos / DR

“Com esta Comissão, ficaríamos a conhecer aspetos da história portuguesa que ainda são “obscuros” — não só por falta de interesse em conhecê-los, mas também porque há casos em que a própria documentação desapareceu e só existe na memória das pessoas.” É com estas palavras que Aurora Almada e Santos, à conversa connosco, apresenta a sua ideia de uma Comissão da Verdade, uma Comissão que incluiria as próprias pessoas que sofreram às mãos do colonialismo português — “por exemplo, pessoas cujo pai foi morto e cuja mãe ficou a cargo de vários filhos que teve de criar sozinha, sem apoio e meios de subsistência” — permitindo incluir várias experiências pessoais, indo além das “grandes massas”. Como afirma a historiadora, este processo de investigação pública seria importante não só porque individualizaria a experiência das pessoas, mas também porque permitiria uma eventual reconciliação pessoal. “Há muita gente que sofreu na pele a repressão colonial”, explica Almada e Santos, “que sentirá necessidade deste processo de reconciliação e de confrontação com o perpetrador de violência — e disso tirar algum apaziguamento e justificação ao qual foi sujeito.” No entanto, a importância da Comissão não se esgotaria na questão das experiências e reconciliações pessoais. Até hoje, o questionamento do passado colonial português continua a ser disperso, frequentemente feito a título individual ou em pequenos núcleos de ativistas e académicos. “A Comissão serviria para trazer este debate para a atualidade”, explica a investigadora, garantindo-lhe uma estrutura coerente e colocando este debate no centro da sociedade portuguesa — algo que não existe na atualidade.

Perante esta inegável importância, há uma crítica que previsivelmente será feita à Comissão: porquê trazer este debate passados tantos anos do final do colonialismo? Como responder aos que alegam que o passado deve ficar no passado? Aurora Almada e Santos é inequívoca na sua resposta: “nunca é tarde demais para se reconhecer e procurar perceber o que aconteceu no passado”, utilizando o exemplo da Austrália, onde se organizou uma Comissão da Verdade que inclui eventos que remontam ao tempo da sua própria colonização — muito anteriores ao século XX. Para além deste princípio basilar do esclarecimento do passado, há dois grandes motivos para criar a Comissão neste momento. Por um lado, é urgente recolher as memórias daqueles que ainda estão vivos e que presenciaram o colonialismo na sua própria pele. Por outro lado, os próximos anos contarão com vários eventos — a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, das independências dos vários países africanos e o centenário da morte de Amílcar Cabral — que tornam este um momento galvanizador para se trazer à luz esta Comissão e toda a reflexão que esta proporcionará.

Esclarecida a importância da criação da Comissão da Verdade do Colonialismo Português, resta-nos pensar sobre o seu escopo e a sua estrutura — que período será abrangido? Quais serão as responsabilidades dos países envolvidos? Quem fará parte desta Comissão? Estas são apenas algumas das perguntas que terão de ser feitas no futuro, mas cujas respostas podem começar a ser pensadas de imediato. Logo de partida, o período temporal é motivo para largas reflexões. “Quando escrevi sobre esta Comissão estava a pensar numa história mais recente de Portugal — ao longo do século XX, que coincide com a guerra colonial. Mas, ao longo dos últimos meses, tenho repensado esta posição”, confessa Aurora Almada e Santos. “Dada a dimensão que Portugal teve no tráfico atlântico de escravos, porque não estender esta Comissão mais atrás no passado? Portugal foi o país que — de longe — traficou mais seres humanos. Esta consciencialização está a faltar na sociedade portuguesa e essa Comissão teria, assim, uma vertente educativa”, ressalva.

Quanto ao escopo da Comissão, esta deve, na opinião de Aurora Almada e Santos, incidir sobre quatro eixos. Em primeiro lugar, seria abordada a questão dos massacres — a Comissão deverá investigar os inúmeros massacres que existiram durante o colonialismo português. Como explica a historiadora, “nós ouvimos falar nos massacres de Pidjiguiti (1959), Batepá (1953), Mueda (1960), Wiriamu (1972) — que são os mais conhecidos — mas houve outros, com diferentes escalas. Durante as chamadas “campanhas de pacificação” em África houve episódios com muitas mortes. Por outro lado, inúmeras pessoas morreram durante as ações portuguesas de “reconquista do Norte” no início da guerra colonial em Angola.” Em segundo lugar, a Comissão também se deverá debruçar sobre os inúmeros ataques ou interferências de Portugal nos países vizinhos das suas colónias – por exemplo, no Senegal, na Guiné-Conacri ou nos Congos. “A operação “Mar Verde”, que teve lugar em Conacri no ano de 1970, é bastante conhecida – mas não existe qualquer documentação sobre o assunto. Porque não chamar pessoas que tiveram algum tipo de envolvimento nestes ataques e procurar esclarecer estas situações?”, questiona a historiadora. Uma terceira questão a abordar pela Comissão da Verdade seriam os assassinatos, em particular dos líderes dos movimentos de libertação africanos. O caso mais conhecido é o de Amílcar Cabral, do PAIGC, mas também existe o caso de Eduardo Mondlane, da FRELIMO — dois casos em que o envolvimento do Estado Português nunca foi esclarecido. Por fim, explica Almada e Santos, “deveria também ser abordada a história das pessoas que sofreram os mais diversos tipos de repressão na guerra colonial às mãos do exército português ou da PIDE — por exemplo, a questão dos aldeamentos e relocação das pessoas. Deve ser questionado o que é que este processo implicou para estas pessoas.”

Em termos logísticos, esta Comissão apresentaria alguns desafios, uma vez que implicaria um esforço conjunto entre diferentes países. A solução de Almada e Santos passa pela combinação de um esforço bilateral com uma plataforma comum a todos estes Estados: “primeiro, deveriam ser criadas pontes entre Portugal e cada um dos outros países envolvidos, numa lógica bilateral — com a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique. Depois, por exemplo, poderia criar-se um grupo mais alargado em que estariam representantes de todos estes países para chegar a conclusões mais abrangentes sobre o que foram as colónias portuguesas em África”, explica a historiadora. Desta forma, seria possível identificar as especificidades do colonialismo português em cada território — por exemplo, o Estatuto do Indigenato que apenas se aplicava a certos territórios, a questão do trabalho forçado que predominava em São Tomé e Príncipe, ou o emprego da população no seio da administração colonial portuguesa, como em Cabo Verde — enquanto, em paralelo, se observariam os pontos comuns do colonialismo. À questão de quem devia conduzir esta investigação, a historiadora enaltece a importância de ser “um grupo mais abrangente possível, de diferentes áreas.” Deve incluir cientistas sociais, como historiadores, antropólogos, sociólogos, a psicólogos, juristas e até políticos. “Estamos a lidar com questões que têm de ser vistas de diferentes perspetivas e saberes”, conclui Aurora Almada e Santos. 

Para quando uma Comissão?

No dia 19 de Abril de 2023, a Comissão da História e Memória franco-argelina reuniu pela primeira vez. No ano anterior, Emmanuel Macron tinha anunciado a sua criação, naquele que prometia ser o maior estudo do colonialismo francês na Argélia desde 1830 e a primeira Comissão que abordasse os crimes do colonialismo num esforço conjunto entre um país colonizador e o país colonizado. Também aqui em Portugal, como disse Aurora Almada e Santos, vivemos um momento galvanizador para criar a Comissão da Verdade e Reconciliação do Colonialismo Português — não o desperdicemos. 

Este ensaio e entrevista são apenas um ponto de partida, uma sugestão para um debate que tem de incluir diferentes atores, diferentes vozes de diferentes países e contextos sociais. Devemos estar conscientes que criar uma Comissão não é, em si, uma poção mágica que cura todos os males da sociedade portuguesa e do seu passado — é urgente criá-la, mas é igualmente importante fazê-la bem. Caso contrário, arriscamos o mesmo desfecho que teve a Comissão franco-argelina, em que são crescentes as queixas de falta de financiamento e de seriedade por parte de França em “desenterrar” o seu passado colonial. Há que organizar esforços para criar a Comissão da Verdade e Reconciliação do Colonialismo Português e evitar os erros de França. Lançar a discussão. Definir o que vai ser estudado e que período será abordado — apenas o século XX, ou a história mais longa do papel dos portugueses na escravatura transatlântica? Estabelecer objetivos definidos. Pressionar os órgãos governamentais. Do que é que estamos à espera?

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