‘Porque É Que as Bailarinas não Ficam com a Cabeça a Andar à Roda?’

por Hugo Pinto Santos,    20 Junho, 2017
‘Porque É Que as Bailarinas não Ficam com a Cabeça a Andar à Roda?’
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O título Porque É Que as Bailarinas não Ficam com a Cabeça a Andar à Roda? não se limita a ser um mote, ou mesmo chamariz. Todo o livro e, na verdade, a totalidade das suas rubricas tomam como ponto de partida uma pergunta semelhante à do título. Cada um dos seus capítulos constitui a resposta a uma pergunta. Por exemplo, em relação àquela que intitula o livro, as autoras esclarecem que, nos profissionais do bailado, desaparecem «os sinais que o sistema vestibular, no ouvido interno, envia ao cérebro sobre o desequilíbrio do corpo causado pelo movimento de rotação» (p.83). «Para os cientistas», informam ainda, «a conclusão é que “o cérebro se adapta ao longo dos anos para anular aquela informação”» (p.84).

É assinalável o espectro coberto pelas perguntas feitas e respondidas ao longo deste livro: desde as mais gerais às mais específicas, das mais circunspectas às mais sedutoras. «Um neurónio», por exemplo, podemos ler nas suas páginas, «dispara impulsos eléctricos, que são transportados ao longo de um prolongamento, o axónio. Uma vez chegados às terminações dos axónios, esses impulsos eléctricos desencadeiam a libertação de substâncias químicas aí alojadas em bolsas especiais – os neurotransmissores, ou mensageiros químicos.» (p.21) É elucidativo que as autoras consigam viajar dessa mítica unidade mínima até à casa-mãe que é o cérebro, na sua morfologia e peculiaridades mais reconhecíveis – «Embora as rugas cerebrais evitem que tenhamos crânios ainda maiores, a cabeça das crianças humanas não é propriamente pequena em relação ao resto do corpo. Isto tem custos. (…) um preço que pagamos para ter cérebros grandes, que se enrugaram, para caber dentro de cabeças ainda assim relativamente pequenas» (p.26). Trata-se de um trânsito entre temas que revela um desejo cumprido de alcance e acessibilidade. Passando da parte ao todo, as autoras conseguem manter a exigência sem tornarem a sua abordagem opaca.

Este livro é também eficaz na desmontagem de ideias-feitas que persistem no erro. Como a noção bizarra, espécie de pandemia dos mitos urbanos, de que o ser humano usa apenas uns inviáveis 10 por cento da sua capacidade cerebral – a qual é claramente desmentida. Comprovam-no, desde logo, como lembram as autoras, os efeitos catastróficos das lesões cerebrais, por mais localizadas e ínfimas que elas sejam. Além da imbatível lógica dos processos inerentes à dinâmica da evolução humana – «Do ponto de vista biológico, não faria sequer sentido que cérebro se tivesse desenvolvido de forma tão complexa no Homo sapiens se isso não tivesse originado vantagens adaptativas para a espécie, e se não fosse para ser integralmente usado.» (p.39) De forma análoga, há questões que animam o debate científico e, mais do que isso, a curiosidade dos amadores – e cuja abordagem aqui é, portanto, sobremaneira pertinente. É o caso da questão das chamadas falsas memórias. Como escrevem Filomena Naves e Teresa Firmino, «A memória não é um repositório rigoroso de factos e, mais ainda, pode ser facilmente distorcida por processos internos (ligados às nossas próprias crenças ou modo de ver), ou externos, como acontece quando há uma “colagem” posterior de outras informações ou comentários de outras pessoas à nossa memória original.» (p.127) E acrescentam ainda que, segundo a equipa Susumu Tonegawa, distinguida com o Prémio Nobel da Medicina, em 1987, «as memórias das vivências ficam armazenadas nas alterações biofísicas de circuitos neuronais específicos, que são designados “engramas”, que podem ser comparadas a peças de Lego, e que estão localizados no hipocampo» (p.129). Esclarecendo um pouco mais o assunto, aditam ainda: «Ao reactivar a memória de um acontecimento, ou uma sucessão de acontecimentos, os nossos cérebros reconstroem o passado utilizando as tais peças de Lego, mas o simples facto de activarmos essa memória – de nos lembrarmos de um determinado episódio – já implica alguma distorção da memória, dizem os cientistas.» (p.130)

São de notar precisões como as que consistem em explicar uma minúcia como seja o reflexo de pestanejar, «com o qual passamos cerca de dez por cento de um dia activo» (p.87). A propósito deste gesto inconsciente, as autoras ultrapassam a explicação mais habitual, que aponta para a limpeza da superfície ocular, para explorarem teorias científicas que referem um lado quase esquemático do reflexo, que será «uma espécie de pausa mental, necessária para retomar o mesmo alto nível de atenção que é exigido durante uma tarefa cognitiva» (p.88). Daí que os cientistas tenham percebido que, na leitura, por exemplo, se pestaneja ao fim de uma frase, ou entre sequências de um programa televisivo. Relativamente ao lendário (mas pungentemente concreto) fenómeno da dor experimentada em membros amputados, ela pode ser explicada por «uma alteração do mapa cerebral do próprio corpo» (p.133) desses indivíduos. Como explicam Naves e Firmino, «No mapa sensorial reorganizado no cérebro do doente, a zona correspondente [à parte amputada]» é «invadida pelas zonas adjacentes» (id.). O que significa que a sensação se propaga como que por contiguidade e «contágio».

Acolhe-se com agrado que as autoras não hesitem em diversificar suficientemente o âmbito das suas opções temáticas. Algo que lhes permite esclarecer, por hipótese, a estranha (ou nem tanto assim) proximidade compositiva entre o chocolate e algumas das chamadas drogas leves – «A anandamida [um dos compostos do chocolate], libertada pelos neurónios, actua precisamente nos mesmos receptores cerebrais da marijuana» (p.142).

Dado o seu formato, baseado na estrutura pergunta-resposta, e pela acessibilidade sempre rigorosa da linguagem, Porque É Que as Bailarinas não Ficam com a Cabeça a Andar à Roda? fornece um manancial de informações diversas e de utilidade variável, mas cujo interesse é constante. Um livro que rapidamente deixa de ser aquilo que apenas aparenta ser: um guia de escopo mais ou menos restrito. O trabalho de Filomena Naves e Teresa Firmino incita uma leitura curiosa e voraz, pela inteligibilidade dos seus conteúdos variados e rigorosamente expostos, e graças ao apoio científico, servido por exemplos concretos, num trabalho de verdadeira divulgação.

Fotografia de capa de artigo: Filme Bodas de sangre (1981), realizado por Carlos Saura

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