Porque é que o Interior importa?

por João Pinho,    9 Março, 2018
Porque é que o Interior importa?
Fronteira, distrito de Portalegre / Fotografia de Bernardo Crastes
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Como em muitos assuntos sobre a sociedade, não é possível falar sobre o interior do país sem termos ido lá. Para deixar já claro, o despovoamento do interior é um problema e bastante grave. E não é possível fazer um debate sobre este tema focando-nos somente em números, isso seria desvalorizar o problema e as pessoas que lá vivem.

Actualmente, continua a existir um paradigma já enraizado e estrutural no nosso país: a capital versus o resto do país. Esta ideia elitista vai dando cabo do nosso país aos poucos. Um país não é feito só da sua capital ou da sua costa. O interior é uma zona mais pobre, no sentido estritamente económico. Sempre o foi e não é algo que possa ser mudado de um momento para o outro. Mas isso não é culpa da região ou das pessoas que lá vivem. Não é uma zona perdida e amaldiçoada. Durante muitas décadas foram feitas más escolhas políticas e nunca lhe foi dada o verdadeiro valor. Com os incêndios do último verão foi dado, mesmo que durante pouco tempo, um palco e voz às dores das pessoas que lá vivem. Esta zona ficou ainda mais pobre, é inegável, mas teremos que aceitar este destino injusto?

O argumento utilizado na crónica para a distribuição dos recursos para as zonas mais pobres e mais afastadas dos grandes centros urbanos não poderia ser mais liberal e mais desumana. Coincidentemente – ou não – é a mesma perspectiva que os países da Europa Central têm relativamente aos países do sul. Os países como Portugal são preguiçosos e pouco produtivos, apesar de, na realidade, num último estudo feito pelo Observatório das Desigualdades do ISCTE-IUL, ter-se chegado à conclusão que os portugueses trabalham mais duas semanas por ano comparativamente à média europeia. Por isso, não merecem os impostos que os cidadãos dos outros países pagam com tanto custo, mas não podem deixar-nos a morrer à fome, porque temos excelentes praias que os alemães e os holandeses tanto gostam de ir estorricar durante quase o ano inteiro. Da mesma forma, o interior não serve só para ir durante as férias de Natal e conviver com a família ou para proteger a capital dos incêndios vindos do interior do país.

Orvalho, distrito de Castelo Branco / Fotografia de Bernardo Crastes

No interior, existe uma riqueza biológica e cultural imensurável que merece ser preservada, e para isso são precisas pessoas para fazê-lo. Mas não é um número mínimo só para passar pelos sítios e tirar o pó das estátuas. São precisas pessoas para visitar os sítios, para enriquecê-los; pessoas para continuar as tradições, porque a cultura não são só os quadros em si, mas as próprias pessoas que vão visitar o museu. Esta cultura rica é visível na diversidade das florestas, dos rios e das reservas naturais, como é o caso da reserva natural da Serra da Malcata ou as Aldeias do Xisto, onde é possível conhecer toda a cultura que foi preservada com muito esforço pelas pessoas das pequenas aldeias (sempre contra a corrente), desde a gastronomia até às tradições e práticas. Para além disto, não é só Lisboa ou Porto que têm património mundial da UNESCO, ou até instituições do ensino superior bem cotadas e conceituados a nível europeu. No interior temos o caso da Universidade da Beira Interior, os politécnicos de Castelo Branco ou ainda a Universidade de Évora, todas elas tentando inovar e diferenciar-se, sempre com maiores dificuldades comparativamente às outras. Aliás, a maioria do património cultural localiza-se foras dos grandes centros urbanos, como é o caso do Mosteiro da Batalha, o Mosteiro de Alcobaça ou o Centro Histórico de Évora. Para além disto, cada vez há um maior investimento na relação entre as instituições do ensino superior e a indústria que se fixa nestas zonas, como é o caso da indústria do papel ou da área das tecnologias.

Um outro conceito muitas vezes mal utilizado é o da qualidade de vida, exactamente porque há uma incógnita nesta equação que varia de pessoa para pessoa ou que é desvalorizado. Por outras palavras, não é possível medir a qualidade de vida somente através da oportunidade de emprego, do custo de vida, das infraestruturas ou dos serviços. Há uma incógnita cujo impacto na vida das pessoas é altamente subjectivo, mas não menos importante. As zonas rurais têm características incalculáveis, desde uma melhor qualidade no ar ou dos alimentos, menos poluição sonora, menos níveis de stress, mais tempo para actividades lúdicas, uma maior longevidade de vida, uma menor taxa de mortalidade infantil, maior proximidade à natureza e existe um maior sentimento de comunidade, algo realmente incrível num mundo cada vez mais individualista. Mas não só são estas características que tornam especial as zonas mais afastadas dos centros urbanos. Curiosamente, nos vários rankings que todos os anos são feitos, as regiões do Alto Alentejo e da Beira Baixa costumam estar no pódio, sendo o concelho de Castelo de Vide que encontra em primeiro lugar. Obviamente nem é tudo perfeito, porque estas zonas têm menos recursos humanos ou serviços e as populações muitas vezes têm que andar quilómetros e quilómetros para chegar a um centro hospitalar, mas isso acontece porque existe falta de investimento. Não esfreguem na cara das pessoas com o argumento de sobreinvestimento, porque isso é uma falácia e é imoral. O que muitas vezes acontece é uma má gestão desse mesmo investimento.

Foz d’Égua, distrito de Coimbra / Fotografia de Bernardo Crastes

O texto do autor acaba com a seguinte frase: “Até porque só criando riqueza hoje se conseguirá ter mais para redistribuir amanhã.” Este argumento, neste contexto, é inválido, porque só tem em conta as grandes cidades. O interior do país é capaz de criar riqueza. Não é uma zona polarizada, um mar de areia e constituída somente por pedra e terrenos inférteis. E curiosamente foi através dos incêndios que foi possível ver o que se perdeu, os quilómetros até ao horizonte de árvores, animais, plantações, casas ou até mesmo pessoas queimadas, exactamente porque nunca foi investido dinheiro da melhor forma, nunca foram implementadas importantes medidas e as populações verdadeiramente apoiadas. E só quem nunca foi pelas estradas da Beira, por exemplo, é que não compreende os verdadeiros problemas estruturais do nosso país. Caso tenha ido e continuou com a mesma ideia, então é mais grave.

Só consigo encontrar uma razão para existirem este tipo de textos: uma tentativa de aumentar o fosso na sociedade e criar um ódio entre as pessoas do interior e as das zonas costeiras. Isso é pouco saudável e muito pouco ético. O país com o qual eu sonho é diversificado, onde não existem distinções sociais entre uma pessoa do interior e o resto da sociedade. Uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária não é aquela onde a distribuição da riqueza dá preferência aos mais ricos ou mais produtivos. Assim, o fosso entre os mais ricos e mais pobres só iria aumentar, iria investir-se mais dinheiro nas zonas já mais produtivas e as mais pobres nunca teriam oportunidade de melhorarem, de se inovarem, um verdadeiro ciclo vicioso numa sociedade estagnada. Este é um assunto muito importante e realmente tenho receio que muitos cidadãos não tenham tido contacto com estas zonas, porque elas também fazem parte do nosso país e, na realidade, só o tornam mais rico. Mas não quero limitar este debate só ao interior ou ao centro do país – região que acarinho muito – porque, na realidade, existem muito mais zonas esquecidas, de norte a sul do país, sendo um problema que se estende à sociedade como um todo.

Podes consultar o artigo que suscitou esta crónica neste link.

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