Porque estamos obcecados com filmes sobre catástrofes?
Os cinemas estão fechados, quem pode trabalha a partir de casa, a vida está em hiato. Há cerca de dois meses, a nossa vida é dominada por um único tema: o coronavírus é agora centro de todo o consumo, mesmo que inconscientemente. Toda a programação foi contaminada com o vírus, desde os noticiários, aos programas da tarde e à programação cinematográfica dos canais de televisão.
A maioria dos programas dificilmente nos oferece uma fuga à realidade corrente, mas a verdade é que o interesse em ver pandemias, doenças, apocalipses e distopias representadas em filmes, séries ou livros tem vindo a crescer significativamente ao longo das últimas semanas.
A procura pelo filme Contagion, de Steven Soderbergh (exibido pelo Cinemundo, e recentemente adicionado ao catálogo da HBO Portugal), um filme assustadoramente certeiro naquilo que toca a evolução e reações à volta de uma calamidade de saúde mundial, disparou em março, com o surgimento de números cada vez mais alarmantes nos países europeus.
Outbreak, de Wolfgang Petersen, que conta a história de um vírus que extermina a população e os animais de uma pequena tribo no Zaire (hoje República Democrática do Congo), com participação de Dustin Hoffman, Kevin Spacey e Morgan Freeman, chegou a ser o terceiro filme mais visto na Netflix nos EUA.
Outros filmes, como os sul-coreanos Flu (Kim Sung-su) e Train to Busan (Yeong Sang-ho), são títulos assíduos nas listas de “filmes para ver na quarentena”. O fenómeno não se cinge às obras cinematográficas – Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, sobre uma epidemia de cegueira cujo critério de infeção é desconhecido, voltou a entrar na lista de best-sellers.
Mas por que é que estas “distopias” são tão apetecíveis em tempos de pandemia e isolamento social? O que nos leva a consumir dramatizações de algo que já é uma realidade? Num artigo do The Guardian, Charles Bramesco fala de uma “terapia da exposição“, em que os espectadores procuram este tipo de filmes para compreender este perigo “inconcebível“.
Os filmes mostram-nos que ele pode ser experienciado e sobrevivido e que, por pior que a situação possa aparentar, acaba por ficar tudo bem. Bramesco diz, ainda, que “para alguns perfis psicológicos, deixar o medo fora do campo de visibilidade acaba por expandir o seu tamanho e intensidade” e que estes “preferem viver indiretamente o fim dos dias e perceber o que está depois, tornando pensável o impensável, e teorizando lugar do ‘homem médio’ no meio disto tudo”.
Pedro Florêncio, professor de Cinema na NOVA FCSH, vai buscar algumas respostas à sociologia. “O [consumo de filmes dessa natureza] prende-se com a força da vertigem da realidade, conceito esse que o pensador Jean Baudrillard trabalhou muito nos anos 1970, após a eclosão de novas redes de comunicação“. A História do Cinema acaba por beber desta vertigem da realidade e a nossa situação atual de enclausuramento acaba por intensificar “a necessidade de participarmos no mundo através das suas simulações“. Para além disso, os filmes acabam por nos ajudar a entender a História. Schindler’s List (Steven Spielberg) Gladiator (Riddley Scott) ou Titanic (James Cameron) são alguns títulos que podem ser entendidos desta forma – depois deles, fica muito difícil imaginá-la de outra forma.
O professor avança ainda que “um filme como o Children of Men [de Alfonso Cuarón], por mais distópico que seja, interessa-nos porque nele há um modelo epistemológico que nos dá uma amostra do mundo real tal como o conhecemos, embora de pernas para o ar”– uma realidade quase tangível que sentimos em cenas como a da visita ao Ministério das Artes, em que vemos várias obras conhecidas, como o David de Michelangelo, a Guernica de Picasso (colado à parede quase como um póster) e referências ao álbum Animals, de Pink Floyd, através da fachada do ministério e de um balão de ar em formato de porco. “O interesse em filmes dessa natureza, neste momento, pode ser entendido como uma forma de nos sentirmos menos ignorantes perante uma sensação de medo que nos rodeia“.
Contagion, por exemplo, é um filme que agora se vê numa situação de alta procura, estando inclusivamente nas programações de canais televisivos, tão pretendido não porque demonstra uma antecipação ou explicações científicas mas sim por ser uma narrativização simplificada. É isso que buscamos nestes tempos: narrativas que nos fornecem alguma previsibilidade, alguma resposta a algo que acaba por ser um acontecimento disruptivo e completamente inédito.
Jacinto Godinho, professor universitário, investigador e grande repórter na RTPacrescenta que “esta é uma situação que o cinema previu. Os filmes sobre pestes e pandemias são sequenciais e sempre fascinaram as pessoas. Já vimos isto retratado tantas vezes que os filmes mostram uma situação quase banal (no sentido em que os contornos já tinham sido trabalhados e antecipados), mas ainda assim chegamos à situação real com uma sensação de espanto como se não fosse possível. E é muito possível. Não há nada mais previsível, tendo em conta os cenários climático, económico e social; e os epidemologistas sempre disseram que vinha aí um ‘big bang‘“. Para o professor, isto levanta questões curiosas acerca da maneira como o público vive a relação entre o que é ficção e o que é realidade, porque o que vivemos parece ser o oposto e o perverso das narrativas cinematográficas que concentram todas possibilidades mais aterradoras; “nos filmes, tudo é excitante e levado ao extremo, o que acaba por higienizar a própria realidade que achávamos que seria sempre pachorrenta, calma e boa”.
O aparecimento de novos paradigmas narrativos no cinema e na televisão
Jacinto Godinho avisa que poderá surgir por aí uma vaga de filmes sobre a Covid-19 puramente por aproveitamento comercial: “haverá muitas histórias e scripts escritos em cima do joelho para cativar a atenção maciça mega-mediática que hoje existe, que captará a ansiedade e obsessão”, mas refere que o que verdadeiramente necessitamos são “narrativas que refletem a nossa relação com a Terra, que deslocam a visão do homem como centro da Terra e repensam o ser humano; elemento viral que tem de reavaliar o seu estar nas diferentes redes que estabelece, sejam elas biológicas, económicas ou virtuais”.
Na verdade, este aproveitamento já é uma realidade. Nas primeiras semanas em que a pandemia começou a alastrar-se, a série Pandemic surgiu de forma oportunista na página principal da Netflix, capitalizando descaradamente a crise sem adicionar nada de construtivo. O filme The Platform, outro original da Netflix, é uma distopia subpar à moda de Snowpiercer, sobre prisioneiros isolados num edifício vertical que têm de lutar pela sua sobrevivência – a sua estreia não podia ter calhado numa altura mais marcante, em que grande parte da população mundial está em isolamento. No entanto, permanece a esperança de que bons filmes possam sair desta crise. Jacinto Godinho relembra Elephant, o filme de Gus Van Sant sobre a tragédia de Columbine, “um filme bem feito sobre uma tragédia, com inteligência e calma ao longo prazo”. Todas as tragédias deram filmes, uns mais interessantes que outros.
Já Pedro Florêncio fala numa revolução televisiva. Alguns filmes (como Parasite ou Spotlight) migrarão para a televisão (agora um mecanismo que servirá para nos “prender” em casa), que contará com mais canais on demand, substitutos de festivais de cinema e produtoras cuja qualidade terá, mais do que nunca, de fazer frente à Netflix – esta será a “nova Meca do cinema contra a qual tudo o resto existirá em oposição”.
Mas o meio que o professor vê como alvo de maior mudança de paradigma é naquela que diz ser “a forma de mediação dominante dos próximos séculos: os videojogos”. Segundo ele, estes permitirão reviver narrativamente a História na primeira pessoa e muitos argumentistas e realizadores de calibre “hollywoodesco” vão deslocar-se para esta indústria.
O que podemos esperar para depois?
A indústria cultural é das que mais sofre com os efeitos desta pandemia e, mais do que nunca, percebemos a falta que faz. Podemos ter a certeza que, assim que a poeira baixar, as artes terão sempre uma resposta interessante para os tempos que passaram e aqueles que se avizinham, para nos ajudar a percebê-los e a vivê-los.
Como diz Pedro Florêncio, aquilo que será criado vai permitir separar o que é apenas para “passar o tempo” e aquilo cujo objetivo é, precisamente, articular o “ser” e o “tempo”. As produções artísticas de qualidade surgirão silenciosamente, quase sem darmos por elas, e caberá a nós saber filtrar e aproveitá-las da melhor maneira.
Artigo escrito por Kenia Sampaio Nunes, originalmente publicado em Espalha Factos.