Portugal: oásis de tolerância ou apenas miragem?

por Cronista convidado,    25 Agosto, 2020
Portugal: oásis de tolerância ou apenas miragem?
Parlamento Português / Fotografia de Carlos Pombo, 2009

Somos consensualmente caracterizados como um país pacato, tolerante e de brandos costumes, mas será que esta descrição ainda faz sentido?

Quarenta e seis anos depois da eclosão da madrugada que todos esperavam, assim imortalizada pelas palavras de Sophia de Mello Breyner,  há a lamentar não ter sido possível impedir a recrudescência de movimentos de extrema-direita.

A existência destes grupos organizados no nosso país não é novidade, até porque, no nosso passado recente, foram vários os noticiários abertos com episódios de violência perpetrados por elementos de extrema-direita, como o esfaqueamento, em 1989, de José Carvalho, à data dirigente do PSR, ou o assassinato de Alcindo Monteiro, seis anos mais tarde. Todavia, estes radicais vão saindo das sombras cada vez com menos pudor e maior frequência para perturbar a pacatez que tanto gostamos de exaltar.

A forma como, há pouco mais de uma semana, foram ameaçados ativistas e deputadas representa a ultrapassagem de uma linha vermelha e um grande indicador de que a extrema-direita está a ganhar força em Portugal. É um dever condenar firmemente qualquer comportamento racista, contra qualquer cidadão, contudo  este acontecimento aparece demarcado como um sinal de perigo impossível de ignorar. Mais do que isso, reveste-se de acrescida gravidade, já que o sentimento de impunidade de membros de organizações extremistas permitiu a intimidação de detentores do poder legislativo do Estado, em representação dos cidadãos, com níveis de agressividade e desfaçatez assinaláveis.

Eventos semelhantes e igualmente deploráveis foram anteriormente reportados em outros países europeus. Laetitia Avia, deputada francesa de ascendência togolesa, chegou a confessar que, num dia em que não tinha sido alvo de abusos racistas na rede social Twitter, pensou que tal se devesse a um problema técnico. Em Inglaterra, a deputada trabalhista Dawn Butler viu-se forçada, no passado mês de julho, a pedir demissão na sequência das constantes intimidações a que era sujeita, designadamente um tijolo arremessado contra a janela do seu gabinete. Em 2019, sete membros do parlamento inglês, incluindo David Lammy, de origem guianense, já tinham sido alvo de mensagens maliciosas. Neste caso, porém, o agressor foi identificado e posteriormente condenado. Será então desejável que este desfecho se generalize, sob pena de o afastamento de uma deputada das funções para que tinha sido eleita não se tornar um caso isolado.

Neste sentido, as declarações do Exmo. Sr. Presidente da República, ao afirmar que “não existem cidadãos de primeira e de segunda”, podem ser interpretadas como uma normalização do sucedido. É um tremendo erro varrer este incidente para debaixo do tapete e fechar os olhos ao carácter excecional e profundamente grave que um ato de ameaça a deputadas eleitas – escudadas pelo direito de exercício de mandato sem serem sujeitas a ofensas à liberdade e integridade – acarreta, nem os pressupostos em que esta assenta. Naturalmente, isto não impede que exista um firme repúdio se o mesmo acontecer a qualquer outro cidadão, sendo que este princípio se estende aos ativistas alvejados.

A este propósito, vale a pena avaliar fatores que contribuíram para que a extrema-direita nacional seja um perigo cada vez mais real e impossível de ignorar.

Por um lado, tal poderá estar relacionado com o aumento da visibilidade dada a movimentos antirracistas, feministas, de defesa dos direitos LGBTI+ ou pela integração de migrantes.  É indispensável que vozes dedicadas a reivindicar mais igualdade de direitos, justiça social e a preservação dos valores democráticos tenham o devido protagonismo e que sintam o apoio da restante sociedade civil, mas esta visão não é obviamente perfilhada por ultraconservadores, para quem se tornam inimigos e alvos a abater. Facilmente os rotulam como afetos à extrema-esquerda, validando desta forma, na sua perspetiva, uma reação polarizada inversamente e que pode ser traduzida como “se eles podem existir, nós também podemos”.

Por outro lado, pululam pela Europa, como cogumelos venenosos, partidos políticos cujas espinhas dorsais muito devem a ideólogos de extrema-direita e que, utilizando instrumentos da democracia liberal e legitimados pelo voto, encontram espaço para expor a sua agenda intolerante nas assembleias. Em 2019, o grupo de extrema-direita Identidade e Democracia (ID) conquistou 76 lugares no Parlamento Europeu (10.78% do total), enquanto que em 2015, ano em que foi constituído e ainda antes de ter adotado esta designação, na sequência das eleições do ano anterior, conseguiu reunir apenas 39 deputados (5.5%) no referido órgão legislativo. Portugal também não foi imune a este fenómeno e, em resultado das últimas eleições legislativas, um partido que recentemente aderiu ao ID logrou assento parlamentar.

Acendeu-se um rastilho e desde esse momento que o discurso populista, inflamado e amiúde racista passou a ter atenção mediática, ao mesmo tempo que é progressivamente normalizado – inclusivé por uma parte da academia. Esta banalização é vista com bons olhos por pessoas corroídas por preconceitos racistas, que começam a sentir que as suas posições são aceitáveis em democracia, representando uma incitação ao aumento de ocorrências de abuso racial. Se um deputado convidou uma colega de hemiciclo a “voltar para a sua terra”, sem punição, o que demoverá um cidadão comum de se dirigir da mesma forma a um vizinho, colega ou desventurado desconhecido com quem se cruze?

Jean-Yves Camus, politólogo francês especialista na extrema-direita,  afirmou num artigo publicado no Le Monde Diplomatique, em 2014, que, mesmo que o atual paradigma apresente algumas diferenças face ao que serviu de pano de fundo para a emergência de movimentos de extrema-direita no início do século XX, o legado ideológico dos mesmos é notório na forma como divisões étnicas e identidades nacionais continuam a servir de base para estimular o ódio contra inimigos externos, como pessoas ou Estados estrangeiros, mas também internos, como minorias étnicas ou religiosas.

Também deve ligar as nossas sirenes de alerta que elementos de grupos essencialmente marginais e de combate, que outrora estavam longe de se interessar pelo jogo de xadrez democrático, possam agora querer desempenhar o papel de peões em nome de forças políticas democraticamente eleitas, prontos a minar o sistema do qual se aproveitaram para ganhar palco e radicalizarem ainda mais as suas bases de apoio.

A extrema-direita nacional existe e está organizada. Cabe a todos quantos prezam a democracia e a tolerância estar atentos ao risco, condená-la e manifestar uma intransigente oposição face a quem ameace o nosso bem-estar social. É a hora de cuidarmos das sementes esquecidas dos cravos de abril e dizermos que não passarão!

Crónica de João Patrício
João Patrício é estudante de Engenharia Física Tecnológica no IST e dirigente associativo.

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