Portugal, um país perfeito
Muitas vezes, as pessoas, tanto lá fora como cá dentro, olham para Portugal como uma “ilha” paradisíaca. Porém, neste país pequenino no canto da Europa, residem, como não poderia surpreender, os maiores pecados rurais e humanos: o racismo, a misoginia, a violência doméstica — crimes que também levam ao assassinato —, a corrupção e, talvez o mais subestimado, a falta de mea culpa.
No entanto, não para meu espanto, os cidadãos, de forma transversal, continuam estagnados no passo zero do famoso processo Dozes Passos dos Anónimos Alcoólicos. Por outras palavras, ainda nem sequer admitiram que têm um problema, cuja urgência na sua resolução é crítica. Se não temos nenhum problema com racismo, que se estende ao nível social, cultural, biológico e institucional; se não existe violência doméstica, que já levou a uma dezena de mortes de mulheres às mãos dos respectivos maridos e namorados, nos primeiros quarenta dias do ano; se não existe misoginia, com juízes que consideram que dois homens que raptam e agridem violentamente a respectiva amante e mulher é justificável em casos de traição, porque assim dizem as passagens da bíblia; se não somos uma comunidade que se agarra cegamente a ídolos; se não existe racismo num país que não tem, por exemplo, representantes políticos negros ou ciganos em número representativo — naturalmente não conto com elite nacional — e cujo debate do Bairro da Jamaica evidenciou de forma crua; então, posso concluir, com todo o orgulho nacional que consigo suar, que Portugal é um caso perfeito, um caso excepção a nível mundial e que, apesar de também sermos seres humanos, nascemos com um gene especial que se estende de Viana do Castelo a Faro.
Mas agora a sério. O nosso nacionalismo é bastante interessante, talvez até um caso de estudo sociológico: não nos achamos melhor do que os outros — pelo menos muitos não o dizem em voz alta —, mas certamente tendemos a considerar que somos perfeitos. Nunca queremos admitir os nossos erros do passado ou a podridão do presente, temos um excesso de orgulho, talvez até um défice de humildade, na forma como fazemos a retrospectiva. Comparando ao que se passa lá fora, em Portugal, existe uma certa dinâmica muito parecida ao movimento Sociedade da Terra Plana: existem números, estatísticas, estudos, vítimas; porém, mesmo assim, há quem não queira ouvir: olham unicamente para as suas próprias experiências, o clássico exemplo de quem vive numa bolha à parte, ou então, vivem no meio do pântano mas não reparam que estão constantemente rodeados de lama.
Como em qualquer discussão, existem aqueles que utilizam excelentes argumentos para se desculparem ou para justificarem o óbvio: “o povo português tem sangue latino”, “ela saiu assim, o que é que estava à espera?”, “eu até tenho um amigo que é preto”, “eu até tenho um amigo que é gay”, “o povo português é pacífico”, “o nosso colonialismo foi brando”, “a nossa ditadura foi soft”, “eles vivem ali porque querem, (não porque não lhes deram verdadeiras alternativas)”. Mas isto não passa de um conjunto de argumentos que valem muito pouco ou nada. Pode ser difícil de acreditar, mas um gay pode ser homofóbico, da mesma forma que um dos países mais racistas do mundo é o Brasil, onde existe uma tentativa de o cidadão negro ser branco, sendo o último uma minoria. Talvez algumas das minhas justificações favoritas sejam aquelas que proliferam nas caixas de comentários das redes sociais. Uma delas é a ideia de que estamos acima ou abaixo da média, dependendo dos casos, e, por isso, não temos nada com que nos preocupar, enquanto não formos o campeão da anormalidade e da selvajaria. A outra, que faço questão de parafrasear, é o truque dos números: porque nos preocuparmos com um tipo de crime que, comparativamente a outros em termos meramente estatísticos, é bastante menos alarmante do que outros? Curioso ou não, ambos os argumentos têm algo em comum: são ditos por pessoas medrosas que, em vez de preferirem enfrentar a realidade crua, optam por procurar o pior exemplo, o pior caso de estudo.
No meio desta confusão e de inúmeras tentativas de debate, existem recorrentes extremismos, onde a sensibilidade de algumas pessoas e movimentos sociais é levada ao nível da estratosfera. É importante compreender que nem tudo é racismo, nem tudo é objectivação da mulher, nem tudo é assédio e, sim, é valoroso filtrar os diversos comportamentos da nossa comunidade, porque se numa aldeia todas as pessoas roubarem, este acto passa de ilegal a uma questão meramente cultural. Porém, para minha felicidade, entre aqueles que dizem, por exemplo, que somos o pináculo de uma sociedade racista e aqueles que nem compreendem que está nos nossos genes essa característica, existem outros que tentam elucidar e alertar para os inúmeros problemas que a nossa sociedade enfrenta e que são graves, principalmente se tivermos em conta o século em que nos encontramos. Porque apesar de sermos um dos países europeus mais progressistas a nível legislativo, ao mesmo tempo, somos também aqueles que mais têm dificuldade em colocar essas mesmas leis em prática e que menos progressistas somos como colectivo.
É crucial estarmos atentos ao que nos rodeia no nosso dia-a-dia. E isso é tanto transversal aos comportamentos dos nossos concidadãos como aos que nos dizem respeito. Facilmente somos racistas, somos preconceituosos, somos corrompidos ou somos violentos. Por desconfiança, por questões culturais, por questões genéticas, por questões religiosas ou por desespero, somos tudo aquilo que condenamos. Mas isso não serve como desculpa para a realidade portuguesa. É sim, uma constatação de humildade e esse é o primeiro passo, um de vários.